Recaídas

Dr. José Roberto

O tempo vai passando e de certa forma vou vendo coisas que preferia não ver, mas, se sou obrigado a ver queria eu poder compreendê-las.

Recentemente… por uso de substâncias…. ficaram abstinentes por mais de cinco anos.

Como pessoas esclarecidas, …. podem voltar a fazer algo (que eu e todos acreditavam ou esperavam) que não fariam?

Um tema atual porem pouco compreendido é “recaída”.

… após dez anos abstinente ele voltou a usar…
(não importa se foi sexo compulsivo, violência, nicotina ou heroína)

Por que um “ex”fumante volta a usar nicotina após um, dois ou cinco anos de abstinência?

Quais partes do cérebro estão envolvidas ou debilitadas?

As influências do meio ambiente, como contribuem?

 

(Questões de um leitor preocupado com recaídas nas drogas fato que está acometendo dois dos seus amigos)

Antes de analisar recaídas, prezado leitor, é necessário compreender a “caída” inicial.

Por que um indivíduo começa a usar drogas ou a jogar ou a ter qualquer comportamento de adição? Veja que não estou falando aqui de experimentação ocasional de uma droga qualquer, estou me referindo a uma outra fase que eventualmente se originou da experimentação, que é um comportamento de adição, ou do popularmente chamado vício. Então, refaço a pergunta: por que as pessoas se viciam?

A resposta genérica é simples: para combater conflitos internos que causam angústia.

A adição a drogas, ao sexo, aos jogos ou ao trabalho, aliviam essa angústia. Resolvem-na de alguma maneira.

O sujeito cai no vício, no hábito persistente de fazer algo, com os sentidos pejorativos todos que existem por trás dessa acepção da palavra, porque se sente melhor do sintoma ansiedade.

A realização de um vício, em um primeiro momento e imediatamente, acaba com o incômodo da angústia.

A embriaguez, em seu sentido próprio e em seu sentido figurado – exaltação causada por grande alegria ou admiração; enlevação, inebriamento, êxtase (Dicionário Houaiss) – decorrente de qualquer droga ou de qualquer paixão, muda imediatamente o foco desagradável em que a pessoa está fixada e que lhe está provocando sofrimento.

Conflitos internos nascem de interesses contraditórios dentro da pessoa: entre dois desejos diferentes, entre um desejo e a censura a ele, entre dois ideais, que se assemelham mas que são diferentes; outras vezes entre assuntos oriundos de diversos polos de interesse da pessoa. Muitos desses conflitos, por serem mais frequentes, já se encontram mapeados há bastante tempo. Um dos polos de determinado conflito psicológico pode se originar, por exemplo, do superego, instãncia psicológica postulada por Freud, conceito fundamental da teoria psicanalítica.

O superego cobra atitudes congruentes com nosso projeto de vida, atitudes que foram idealizadas e fixadas como boas. Se não estivermos cumprindo com esse plano geral de vida, que nem é totalmente consciente, sofreremos forte ansiedade que é, então, indicadora de conflito interno. Uma espécie de termômetro da “febre” emocional aqui chamada de “conflito interno”.

Diz-se, com grande propriedade, que o superego é solúvel em álcool, isto é, pode-se compreender, se quisermos aqui explicar o fenômeno também biologicamente e não apenas psicologicamente, que a substância etanol, sendo depressora do sistema nervoso central, exclui do funcionamento cerebral naquele momento, os neurônios associados com a censura interna, com o superego, com aquele nosso lado que compara o que estamos fazendo com o que desejávamos como projeto de vida. A embriaguez muda o comportamento da pessoa globalmente pelo fato de deprimir todos os neurônios mas o efeito que chama mais a atenção em um primeiro momento é a falta de crítica que induz no intoxicado.

O álcool dissolve o superego. Por um tempo.

Exatamente o que desejamos, às vezes ou quase sempre. Se conseguirmos desativar o guarda, anular a polícia que existe dentro da gente, poderemos fazer coisas proibidas porque prazerosas, com muita facilidade. É aqui que entra a adição a uma droga como o álcool.

Ainda estamos engatinhando no esclarecimento da intimidade biológica desses processos cerebrais relacionados com os componentes pulsionais.

Chegou-se, já há bastante tempo, ao circuito de recompensa cerebral que envolve neurônios cujos corpos celulares estão em núcleos ligados ao sistema límbico e que causam prazer imediato quando estimulados. Seu mapeamento científico detalhado continua apesar de muitas das vias pelas quais os impulsos nervosos chegam a tais neurônios já serem conhecidas, constando da realidade científica atual.

Pois bem, as drogas e as paixões estimulam de alguma maneira esse circuito de recompensa.

Como? Sabe-se só um pouco, ainda, sobre isso. Porém, o conhecimento atual já se mostra suficiente para fazer surgir no universo do tratamento biológico, na moderna psicofarmacologia, remédios bastante eficazes nesta primeira década do século XXI.

Também os tratamentos psicoterápicos evoluiram muito.

As pessoas tendem a ter maior facilidade para lidar com tratamentos que não incluam remédios. Tentem fazer esta pergunta, a conhecidos e parentes: o que você considera que é melhor para acalmar a angústia provocada por um conflito interno: um afago ou 3-hidroxi-4-pentano-qualquer-coisa na veia?

Quase todo mundo responde que o afago é melhor, não é?

Acontece que essa, talvez, não seja a resposta majoritária daqui a cem anos.

Tal dicussão, no entanto, é também complexa e demanda outro artigo. Voltando ao tema deste, o que é senso comum é que as pessoas vão atrás das sensações prazerosas. Também, por outro lado, fogem de situações potencialmente ou francamente desprazerosas. Ninguém quer pagar mico nenhum, nunca. Não apenas gente, seres humanos.Todos os animais.

Um rato com um eletrodo implantado em seu circuito de recompensa cerebral, não quer saber de mais nada a não ser de ficar indefinidamente apertando a alavanquinha que provoca o estímulo da área cerebral. Orgasmos. Não são o melhor da vida? Não é o que mais motiva as pessoas? O rato só para quando se esgota fisicamente de tanto orgasmo.

Sabendo dessas coisas, pode-se interagir com a pessoa que está apresentando o problema e até ajudar a resolvê-lo, com remédios e com outras abordagens.

É por isso que as psicoterapias, as religiões, as amizades, os conselhos, as repressões, funcionam. Em graus diferentes de efetividade, claro, mas que funcionam, funcionam.

Hoje em dia é apenas parcialmente conhecida a maneira como o impulso nervoso decorrente de um afago, de um cafuné, viaja na rede neuronal, quais suas conexões, em que lugares cerebrais age, quais mediadores químicos estão envolvidos, qual o mecanismo íntimo biológico que faz com que cause calma, por exemplo, num nenê que está num berreiro catastrófico total.

De qualquer modo, indiferente a esses detalhes, a maioria das pessoas se contenta em saber que o que acalma o nenê estressado é o afago.

E como seria o afago dirigido a um drogado? Quem deveria fazê-lo?

Existem muitas formas de ser feliz. Algumas felicidades são mais simples, outras mais complexas. O nível de intensidade delas também é variável.

Observar um pôr-do-sol, uma paisagem deslumbrante, um bicho e seu estranho comportamento, é muito prazeroso para muita gente. E imediato.

Sentir um gosto agradável, ouvir uma música, deliciar-se com ela. Imediato.

Fazer essa música que deliciou alguém, também é prazeroso. Um prazer maior porque se sustenta em outros prazeres pequenos, remete a outros momentos, tem a característica de se repetir em outras conjunturas, compete, celebra, rearranja as iniciais.

Fazer uma música é muito mais complexo que ouvir uma música. Deve ser e é, portanto, um prazer maior. Quem já fez uma música sabe disso.

Temos, então, uma escala de prazeres dentro da gente.

Prazeres menores, afagos, que, gradativamente, vão se somando, se articulando, se complicando e vão construindo outros prazeres maiores.

É necessário firmeza de intenção, insistência, um certo insistir, uma capacidade de resistir a frustrações iniciais, que não são todos os seres humanos que o conseguem, para executar tal tarefa de obtenção de prazeres complexos.

Às vezes nem é necessário o resultado final. O próprio ato de conseguir construir esse percurso, de tê-lo planejado, com o tempo e com a percepção de que o resultado imaginado foi possível e foi muito bom, já se torna prazeroso, para alguns.

Penso nesse personagem que está em evidência outra vez na atualidade, com dois filmes que pretendem biografá-lo parcialmente e que já esteve antes no imaginário popular, por ser figura emblemática de revolucionário: Ernesto Che Guevara. Com a vitória que obtiveram ele e seus companheiros, poderia ter entrado em outra dimensão de sua existência, ajudar a reconstruir sua pátria da maneira como sempre sonhara. Não quis, no entanto, usufruir desse novo prazer, ao contrário de Fidel Castro. No momento subsequente à vitória da revolução cubana, existia ali a necessidade de reconstrução do país que, em última instância, era o fim que Fidel ansiava. O meio para conseguir esse fim, foi a revolução.

Ernesto Che Guevara, no entanto, preferiu continuar revolucionando outros lugares, outros países, derrubando estruturas sociais que julgava insuficientes. Fixou-se no ato de fazer revoluções. Mirava-se em Bolivar, não em Fidel Castro. O meio (revolução armada) para atingir um fim (reconstruir o país não mais com as regras do capitalismo) passou a ser um fim em si mesmo, o objetivo de sua existência.

Ser revolucionário é algo absolutamente complexo. Muito mais “evoluído”, no sentido de complexidade, que o ouvir uma canção. Ou que fazê-la.

São, portanto, coisas diferentes, que levam a intensidades de felicidade diferentes. Para se conseguir a felicidade associada com a realização de um sonho, é necessário, entre outras coisas, uma tolerância e uma resistência a frustrações muito grandes, que drogados de uma forma geral não têm dentro de si. Preferem os prazeres mais imediatos apesar de menos duradouros e menos intensos.

De outro lado, evolução não significa, por si só, o abandono definitivo de soluções parciais conseguidas anteriormente.

O autor de músicas nunca deixa de curtir outras músicas, nunca deixa de gostar de ouvi-las. Apenas as ouve de outro modo. Ouve-as com ouvidos de compositor. Não mais de simples admirador.

É por isso que recaídas na droga não devem ser consideradas o fim do mundo.

Representam apenas uma volta ao primitivo modo de ser. Ou, pelo menos, uma tentativa de voltar ao que já passou, ao que já viveu anteriormente. Um saudosismo. Por isso mesmo faz parte do processo de abandono de determinada fixação.

Fuga para as drogas. Recaídas nada mais são do que retornos a momentos onde resolveu “bem” alguma situação conflitante que lhe causava forte incremento na angústia normal até então administrável.

Independentemente do enredo social a que está submetido, do maior ou do menor interesse que o romance pessoal adquira para este ou aquele público, de maior ou de menor complexidade, contado desta ou daquela maneira, o sujeito recai quando não consegue mais administrar, com o aparelho psicológico que possui, naquele momento, a ansiedade resultante de reagudização de seus conflitos internos. Ou de novos conflitos também insolúveis naquele momento.

Isso é verdadeiro e acontece com frequência.

Existem outras possibilidades, menos freqüentes.

O viciado pode, também, numa atitude magnânima consigo, achar que já se livrou do passado e experimentar a maneira que utilizava anteriormente, que hoje sabe que é pobre, para constatar vitoriosamente, verdadeiramente, que mudou ou que já não depende mais daquilo, da droga de abuso.

Esse coitado, por pura ignorância, talvez, ainda não sabe que resolveu cutucar a onça com vara curta.

Acontece que a força biológica é enorme. A onça o engole de novo. Os receptores cerebrais anteriormente sensibilizados para a droga, que estavam desativados, assim como velho caminho, o percurso do estímulo neuronal, são imediatamente reavivados. E o prazer reaparece como uma velha fantasia utilizada em outros carnavais, com todo seu esplendor.

Realmente não se deve cutucar a onça com vara curta. A onça, a bem da sanidade geral, deve ser esquecida.

Mas isso é mais um aprendizado que se tem que fazer.

O adito deve, sim, ser alertado para o fato.

Mas, quando acontece, tal aprendizado tem que ser realizado pelo próprio sujeito, no modo de vida da atualidade em que está sofrendo com o problema. Não pode ser imposto e nem é possível aprendê-lo e apreendê-lo apenas teoricamente. Isso significa que não é desejável que seja tirado de sua cidade, de sua família, de seu trabalho, para se tratar numa clínica no campo, até se desintoxicar e “mudar seu modo de ver a vida”.

Assim não mudará nunca. Não vai repensar seus problemas nem se repensar num contexto de cidade grande, convivendo com pessoas na roça, por exemplo. Por mais preparadas que sejam. Quando voltar, os problemas que o fizeram recair continuarão no mesmo lugar.

Para que resolva esses problemas ele precisa continuar convivendo com a gente de seu meio, com seu trabalho, com seus vizinhos, com seus colegas. Dentro do seu contexto de vida. Tem que se tratar na cidade onde se encontra, resolver seus problemas dentro dela.

Terá que procurar ajuda concreta, especializada, terá que começar psicoterapia e tratamento com psiquiatra. Terá, talvez, que conviver com uma equipe multiprofissional por um tempo. Infelizmente não vai sair do buraco em que se meteu novamente se não fizer nada e se sua família for ignorante ou até mesmo cúmplice nesse seu modo de agir.

Resiliência

Prezado Dr. José Roberto,

Li e apreciei o artigo “Covardia” escrito e publicado pelo senhor no site “SOS Psiquiatria”.

lea el informe completo

Tive uma paciente com as mesmas queixas acerca de sua profissão, o caso era o mesmo (inclusive nas queixas), no entanto, ela foi readaptada em outra função, pois estava esgotada e sem nenhuma condição de “encarar” uma sala de aula com alunos de perfil semelhante aos descritos pelo senhor no referido artigo.

Percebi que, muito embora ela tivesse se preparado para sua profissão nas melhores universidades, tendo cursado três cursos universitários em Faculdades Estaduais e Federais, com currículo exemplar, a paciente estava muito debilitada pela incompatibilidade entre seu investimento (intelectual e emocional) na carreira e o reconhecimento profissional.

Sua Diretoria, colegas, alunos e pais, enfim, o reconhecimento por seu trabalho era inexistente frente ao que ela esperava depois de estudar tanto e fazer de seu ofício a razão de sua vida.

Eu gostaria de pedir que o senhor escrevesse sobre os limites da resiliência diante da falta de reconhecimento, falta do olhar do outro, eco, vazio e solidão. Quando a automotivação já não basta para se manter em movimento produtivo, dando a impressão de cada minuto de nossa vida dedicado ao que não vê, parece nos violentar as emoções, expropriando de nós toda a energia de que necessitamos para prosseguir em bom nível de saúde mental e física…

Vou tentar responder a essa instigante questão, enviada por uma colega psicóloga, sobre meu artigo “Covardia” publicado neste mesmo site, lançando algumas idéias sem a preocupação inicial de alinhavá-las de forma sintética e totalmente coerente em um primeiro momento. Creio que essa espécie de “tempestade cerebral” possa trazer algum resultado útil apesar de tornar um pouco longo o texto. É que o tema, pela sua complexidade, demanda análises mais longas.

Vamos lá, então.

O sentido figurado da palavra “resiliência”, de acordo com o dicionário Houaiss, refere-se “à capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças”.

Foi nessa acepção que a Psicologia utilizou-se da palavra – emprestada da Física, que conceitua resiliência como “a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica” – para analisar os meios utilizados pelas pessoas para superar acontecimentos traumáticos e continuar com seu processo de construção da personalidade.

A palavra, trazida pela colega psicóloga, remete, neste artigo, a uma professora que se encontra questionando sua maneira de exercer a profissão que escolheu e que está no limite de sua resistência às adversidades de sua prática, fazendo com que questione até mesmo se acertou em sua escolha profissional. Não está conseguindo superar um forte bloqueio no exercício profissional, sente-se frustrada na sua atividade.

Pois bem, a resiliência, nesse sentido, depende de um conjunto de processos psicológicos muito complexos: o funcionamento psíquico global com seus mecanismos de defesa e componentes pulsionais e a maneira peculiar como a totalidade das identificações feitas por determinada pessoa propiciou, para ela especificamente, a escolha e o exercício de uma profissão.

Escolhi como mote para pensamento e argumentação dessa questão, um pouco da biografia de duas personalidades muito criativas, gênios em suas atividades: Van Gogh e Greta Garbo. Vejamos como lidaram com questões que, pode-se dizer, guardam semelhanças entre si.

O primeiro, Van Gogh, suicidou-se aos 37 anos. A segunda, Greta Garbo, retirou-se do cinema aos 36 anos. Aquele, pobre, louco, gênio, esteve sozinho ou quase sozinho durante toda sua vida. Esta, rica, reconhecida como uma das maiores estrelas de cinema de todos os tempos, também genial, teve intensa vida social porém buscou a solidão em determinado momento; retirou-se da cena cinematográfica e do desvario social e foi viver sua vida de outra maneira. Morreu aos 85 anos, parece que razoavelmente feliz com a maneira como conduziu sua existência.

Aqui, um lembrete importante: a solidão, por si só, imposta ou conquistada, não é termômetro adequado para se medir o nível de satisfação pessoal ou a paz consigo mesmo.

Um resumo das biografias de ambos pode ser encontrado na Wikipédia, fonte da web que, nos dias de hoje, está mais do que simplesmente interessante:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Van_gogh

http://pt.wikipedia.org/wiki/Greta_Garbo

Sua leitura, faz pensar algumas coisas.

Por que uma pessoa “escolhe”, por exemplo, ser educadora? Ou médica? Ou atriz? O que faz com que alguém seja contador? Ou advogado? Ou pintor? Que desejos, que fantasias, que fugas, que arranjos estão por trás dessa decisão? Que fatores de natureza pessoal, psicológicos e sociais contribuíram para tal? Em quem o sujeito se mirou como exemplo? Por quanto tempo e com que intensidade a decisão tomada por essa pessoa, de exercer tal atividade, se manterá sem se desgastar? Como e até quando vai superar os entraves à realização de seus intentos?

Essas são algumas das perguntas possíveis.

Não existe uma resposta apenas que dê conta de todas elas. A escolha e o exercício profissional é o resultado conjuntural da interação de diversos fatores.

Se apenas um desses fatores, como por exemplo o fator econômico – quanto recebe ou receberá pelo seu trabalho, na profissão escolhida – fosse o fator dominante nessa complexa rede que vai determinar a escolha da profissão, quem saberia calcular quantos quadros mais deveria ter pintado Vincent Willem van Gogh para desistir de vez de sua pretensão artística? Isso chegaria a acontecer algum dia, já que morreu jovem, 37 anos, e, em toda sua vida, com abundante produtividade pictórica, vendeu um único quadro, O Vinhedo Vermelho, por 400 francos?

Ou, se esperasse o sucesso econômico exclusivamente, quanto tempo mais deveria esperar para mudar de ofício, já que o que estava fazendo não estava “dando certo”? Observe-se que como nunca deixou de pintar, provavelmente, mesmo se tivesse vivido mais, não abandonaria nunca tal ocupação porque estava como que “viciado” nela, (num bom sentido), focado absolutamente nessa atividade, não conseguindo em função dessa fixação, procurar outros modos para viver sua existência.

De alguma maneira, faz sentido também, pensar que ele morreu ainda jovem porque não agüentou o desprazer, a sensação de vazio, a falta de reconhecimento, a solidão, a penúria financeira. Enlouqueceu em função disso tudo e suicidou-se.

Não teve, afinal, a capacidade de resiliência, a capacidade de manter sua intenção inicial, superar os obstáculos, refazer-se, repensar-se, quando se deparou com fortes dificuldades que enfrentou para exercer sua paixão existencial. Não coneseguiu superar as ditas dificuldades. Pode-se inferir que sua morte talvez tenha sido causada, entre outras coisas, pela decepção com a profissão? Isso faz sentido para muita gente.

O que deveria ser um círculo virtuoso – fantasia frequente em todos nós – (a vida acaba por determinar a escolha da profissão que leva a um incremento na auto-estima que melhora a vida do sujeito, que por sua vez implica na melhora de seu exercício profissional e assim sucessivamente), no caso de Van Gogh não funcionou.

O círculo virtuoso se interrompeu no caso dele: a vida causou a escolha da profissão, que, não “dando certo”, minou a auto-estima, que causou a decepção com os outros e com a própria vida, que terminou provocando a morte do infeliz.

Pode-se concluir que caminhavam juntos no seu caso, o prazer, o entusiasmo de pintar e o reconhecimento sobre sua pintura?

O reconhecimento público interfere no prazer de fazer alguma coisa sempre, para todos os seres humanos? E o reconhecimento público é o aplauso ou o retorno econômico? Ambos? O que significa “dar certo na profissão”?

Resumindo: o que faço, como faço e porque faço alguma coisa, o porquê exerço uma profissão, depende da escolha que fiz, que foi baseada em um conjunto de fatores. A resposta social ao que tenho para oferecer, como contribuição à qualidade de vida dessa sociedade, o feedback que dela recebo, também vai contribuir para o aprimoramento do que faço ou, quem sabe, para a desistência de tal modo de vida, para o abandono do projeto inicial.

O quanto isso é verdadeiro, o quanto dependemos do feedback social é variável em cada um de nós.

Para transformar um potencial desenvolvimento trágico linear em círculo virtuoso, as forças determinantes das ações deverão ser intensas no sentido da realização pessoal com o que se está fazendo, a satisfação com o ideal estético, como também deverá ser grande a fonte econômica de subsistência que se tem para continuar bancando tal projeto de vida.

Se ambas são altas, se me considero um grande pintor, se estou satisfeito com o resultado estético do que faço, mesmo não havendo nenhuma repercussão imediata, mesmo não encontrando retorno de nenhuma espécie de outras pessoas com relação ao resultado da minha atividade, continuarei exercendo da mesma forma o ofício. Indefinidamente ou por quanto tempo eu achar que devo continuar.

Agora, se uma depende da outra, se a aceitação do meu projeto pela sociedade, se o que recebo ao executá-lo for necessário para sua continuação e isso não está ocorrendo, fica evidente que o projeto deverá ser revisto. Ou que os meios que estou utilizando para sua realização deverão ser repensados.

Passemos ao outro exemplo: em um determinado momento de sua carreira, Greta Garbo sumiu. Que circunstâncias contribuíram para isso? Quais delas vinham dos estúdios? Quais vinham dela mesma? As questões econômicas eram, no caso dela, primordiais?

Se eram, por que, agora pensando o contrário dos parágrafos anteriores sobre Van Gogh, determinadas pessoas “bem-sucedidas” – no julgamento da determinada tribo que as admira – param de fazer alguma coisa que estava sendo tão aceita e lhes trazia dividendos econômicos e outros tipos de retorno excelentes?

Pois é, mistérios. Greta Garbo era, antes de tudo, uma mulher absolutamente misteriosa. Como todos nós, aliás. Conclui-se que não existe apenas um foco único nessas decisões de vida.

Lendo biografias, analisando os diversos matizes do conjunto de fatos e percepções que aparentemente mobilizaram determinadas atitudes do biografado, pode-se responder, pelo menos individualmente a algumas dessas questões. Cada um de nós vai chegar à própria conclusão. Não sem controvérsia, mesmo interna, porque, como já foi dito, não existem respostas únicas e definitivas para essas questões.

Voltando ao tema, tenho a dizer que minha opinião a respeito, minha contribuição mais superficial, mais imediata ao assunto, é que um professor tem que olhar para um aluno com olhos de solucionar problemas. Da mesma forma que um médico olha para alguém que julga necessitar de seus serviços.

O indivíduo saudável ou com alguma doença simples, curável, necessita pouco do médico. O bom aluno necessita pouco do professor.

Ambos, o indivíduo quase saudável e o bom aluno, vão seguir seu caminho, independentemente do médico que o consultou ou do professor que o ensinou.

Estes, todavia, tendem a amá-los mais do que deviam. O bom aluno e o sujeito quase saudável não precisam do amor do professor e do médico respectivamente. O mau aluno e o doente grave, sim. Mas quem há de querer determinar as escolhas do amor, não é mesmo? Os que mais dele precisam não o têm. Não é meio que uma regra geral, isso? Quem não passou por isso?

Existem professores que nutrem um grande orgulho pelo seu brilhante aluno porque imaginam que o resultado atingido por ele dependeu de seu trabalho assim como existem médicos que gostam muito dos “bons” pacientes porque os resultados por eles apresentados decorreram do fato de terem feito tudo direitinho o que lhes foi por eles recomendados. Existem, nesses casos, os feedbacks positivos evidentes trazidos pelos “bons” sujeitos.

Agora, sabemos que na verdade quem precisa mesmo de professor é o mau aluno.
A vitória real, o verdadeiro feedback positivo ocorreria se alguém, se algum brilhante professor, conseguisse transformá-lo num bom aluno.

Tem-se então que o grande, o enorme desafio de todo mestre, é este: inspirar seus alunos, ajudá-los em suas transformações. Recuperá-los. Propiciar-lhes uma nova dimensão da vida. Se isso não está acontecendo, o mestre precisa se rever ou rever seus métodos ou os procedimentos ditados pelo estilo de ensinar que escolheu, lembrando que isso, por sua vez, deveria lhe ter sido ensinado no básico de sua formação porque faz parte do seu contexto profissional.

A função do educador é fazer com que seus alunos se apropriem de determinados conteúdos e consigam exercer crítica sobre o que aprenderam levando adiante o bastão do conhecimento.

Para isso terá que acolhê-los, vivenciar as situações do dia-a-dia com eles, oferecer aos alunos coisas que nunca vivenciaram com ninguém, nem mesmo com o pai ou mãe que, tecnicamente, teoricamente, deveriam ser os provedores dessas experiências fundamentais da vida.

Todas as profissões, em suas dimensões teórica e prática, assentam-se em diversos saberes.

A medicina por exemplo, em sua dimensão teórica é sustentada pelo estudo da anatomia, da farmacologia, da histologia, da bioquímica, da fisiologia, e de muitas outras ciências que amparam e articulam o saber médico global.

O índice de desistência da profissão médica, para quem chegou ao diploma, é dos mais baixos de todas as outras profissões. Talvez porque, frente ao descontentamento com os resultados conseguidos no exercício global de determinada especialidade, por exemplo, no exercício da clínica, o profissional opte por desenvolver-se em outra direção e exercer uma das outras áreas, sem abandonar a Medicina.

Se não gostei de ser cirurgião, posso tentar ser cardiologista, bioquímico ou me dedicar à epidemiologia, por exemplo, atividades muito diferentes entre si. As opções são muitas, dentro da área médica.

Por outro lado, posso, também, sair da área médica; ninguém me obriga a permanecer nela só porque investi tanto tempo no aprimoramento de seu exercício. Juscelino Kubitscheck era médico. E foi um dos melhores presidentes do Brasil. E talvez por isso mesmo.

Acredito que há que se pensar numa profissão como uma área específica que será o centro das atenções do sujeito que a escolheu, por um tempo de sua vida. Como o conhecimento humano é todo articulado, se você não gostar mesmo do que está acontecendo na sua vida profissional, sempre há a possibilidade de mudar para outro ramo, usando inclusive tudo o que sabe, tudo o que já aprendeu no atual ramo, como diferencial no exercício da nova função.

Exercer, por exemplo, o ofício de vendas, vender coisas, objetos, imóveis, carros ou até mesmo idéias, tendo tido experiência no magistério é uma coisa. Para quem não teve tal experiência a atividade é totalmente diferente.

Enfim, mude para sobreviver se não está tendo o sucesso por você esperado qualquer que seja o significado dessa palavra para você. O que você fez até hoje será certamente utilizado, de uma forma ou de outra, na sua nova atividade.

Por último, é preciso lembrar que existem diversas maneiras de se exercer determinada especialidade, digamos assim, um estilo, geralmente inaugurado e mantido por alguém que se diferenciou no domínio específico por algum motivo, um expoente que conduz ou conduziu sua “escola”, que acaba sendo a referência, o núcleo orbitado por partidários que compartilham aquela maneira específica de exercer o determinado ofício. Identificaram-se com ele. A interlocução entre os pares é quase sempre possível dentro de cada um desses estilos.

Pode-se, em outras palavras, mudar de turma dentro da profissão.

A psicanálise é um bom exemplo disso.

Existem os psicanalistas freudianos, os bionianos, os kleinianos, os lacanianos, os winnicottianos e outros, “turmas” que nem sempre convivem harmoniosamente, apesar de serem todos psicanalistas.

Quantas linhas de trabalho e de estudo existem na área da educação? Pois é. Mude para outra. Mude de turma, mude de enfoque, saia do serviço público e migre para o particular ou vice-versa. Ou, construa sua própria escola.

As dificuldades que aparecem na prática profissional, são dificuldades que surgem sempre que alguém se propõe a contribuir de alguma maneira com funções de auxílio dirigidas a outrem, de maneira nova ou mesmo de uma maneira que já se encontra mapeada mas nem tanto.

São as vicissitudes de seguir um caminho não totalmente conhecido.

Se você não se contenta com determinada linha de trabalho, com uma “escola” que satisfaça a maioria dos seus desejos e seja balizadora de sua atividade profissional e não consegue mudar o que o descontenta porque a “turma” instalada no poder na atualidade, na linha em que você está, não deixa, mude de linha ou invente outra, invente a sua maneira de exercer seu ofício, o ofício que faz sentido para você.

Isso é eticamente possível sempre.

Artigo do Dr. José Roberto Campos de Oliveira.

Obs: Existem conceitos que ainda estão em fase de melhor elaboração, que talvez se mostrem, com o tempo, mais adequados para se analisar o tema. A dita “síndrome de burnout”, que acomete pessoas de áreas que cuidam da saúde e educação principalmente, parece-me interessante nessa perspectiva. (Por enquanto, Z73.0 na CID-10).

Sobre os Artigos – Leia este primeiro

Os artigos desta parte do site não são artigos técnicos científicos nem de informação sobre questões psiquiátricas ou psicológicas estritamente falando.

São escritos que têm apenas a intenção de divertir e de inspirar reflexões nos leitores.

Retratam com ligeireza – são curtos, às vezes pequenos contos ou “causos” – algum aspecto pitoresco do dia-a-dia, uma faculdade psicológica qualquer em ação, uma maneira peculiar com que alguém lidou com um aspecto problemático dos relacionamentos humanos.

Por isso resolvi que devem constar de um site sobre psiquiatria e psicologia. Porque, com efeito, todas as questões humanas interessam a essas disciplinas, mesmo e talvez até principalmente, as mais triviais.

Discriminar, explicitar, analisar, refletir sobre comportamentos, sentimentos, pensamentos, interações sociais, problemas da considerada “vida normal” e também da esfera da arte, é muito importante quando se pretende compreender a gênese dos transtornos psíquicos para melhor resolvê-los.

Por isso os artigos são tão variados e abordam temas aparentemente sem conexão uns com os outros. O que têm em comum são que comentam acontecimentos da vida.

Servem como lembretes, pontos de partida sobre questões que poderão ser mais aprofundadas se o leitor assim o desejar.

Exemplos? Uma piada, uma crônica, uma crítica sobre algum espetáculo ou sobre alguma obra de arte ou sobre um filme ou sobre um livro, uma reflexão inusitada sobre algum aspecto da vida, uma constatação, que às vezes pode ser surpreendente, de um mecanismo psicológico qualquer atuando dentro de si.

Tais artigos, escritos por mim e por outras pessoas, foram escolhidos para constar nesta parte do site porque os considero interessantes ou relevantes. As pessoas que os lerem, terão uma primeira impressão a respeito do que pensa, como vê o mundo e talvez até como age, o autor do texto.

Ao colega – profissional de saúde – que quiser publicar seus artigos neste espaço, basta mandá-los para avaliação. Os artigos só serão publicados se assinados, no site não deverá existir artigos apócrifos. Os que não estiverem assinados são meus.

Poderei também repercutir ou criticar artigos vindos de revistas ou de jornais, da imprensa em geral e da própria Internet, que considero importantes. Note-se que, neste caso, vindos de pessoas não necessariamente profissionais da saúde mental mas de quaisquer pessoas com sugestões ou opiniões que considero instigantes sobre alguma questão social ou científica de relevância da atualidade.

Questões ou textos relacionados com a arte em geral e particularmente com a literatura serão sempre bem-vindas pois contribuem de forma significativa para a formação e desenvolvimento da personalidade através das variadas identificações que propiciam.

Possivelmente também serão abordadas questões políticas ou que tenham a ver com desenvolvimento psicossocial visto que são matérias que fazem parte daquelas que norteiam e inspiram o pensar e agir psiquiátricos e psicológicos.

Covardia

Em uma conversa sobre política com um amigo bem mais jovem, este citou uma frase de um cantor de quem gosta muito, “vocalista do Angra, Edu Falaschi”, sobre “exigir com rigidez e veemência que o Brasil tome outro rumo”.

Desafiou-me a comentar a frase, coisa que faço neste artigo.

Através de um pequeno exemplo, de uma atividade psiquiátrica corriqueira, uma simples consulta ambulatorial, posso exemplificar o que penso a respeito dessa questão importantíssima, complexa, mista, de cidadania e ao mesmo tempo de individualidade, de exercício de atividade produtiva, de bem-estar psíquico e físico, de convivência, de atuação política, questão essa que tem a ver com a frase lembrada por aquele amigo.

O exemplo é o seguinte: atendi outro dia, médico psiquiatra que sou, uma paciente que veio de uma cidade próxima a São Paulo, encaminhada por seu médico clínico geral, para avaliação de sérios sintomas de depressão e estresse. Sua queixa era de não conseguir mais dormir direito à noite, não conseguir sentir prazer com seu trabalho, andar triste, desanimada e chorando muito quase todo dia. Tal estado de espírito se estendia a todas as outras atividades de sua vida. Não conseguia mais cuidar da casa, dos filhos, do marido. Veio para se tratar dessa “depressão”, encaminhada pelo colega clínico geral, a fim de se consultar com um “especialista em estresse”.

Questionada sobre o que estava causando isso na sua opinião, disse-me que, como professora, tinha que aguentar, sem conseguir fazer nada, seus alunos adolescentes, com atitudes delinquentes dentro da sala de aula. Referiu sentir-se, hoje em dia, absolutamente impotente. Não tem mais conseguido exercer o que sempre considerou o ofício de sua vida. Alguns dos meninos, sim, “meninos ainda – apesar de quase rapazes” – entram com estiletes, facas, até revólver nas salas de aula; ameaçam os professores e outros colegas com quem implicam e ninguém, absolutamente ninguém, toma alguma atitude concreta para contê-los. Alunos de 12, 13 anos. Ela se queixou diversas vezes à diretora da escola, conversou com outros colegas. Conseguiu apenas promessas vagas de que a diretora iria chamar os pais dos garotos e conversar com eles na tentativa de mudar esse estado de coisas, e só.
Sentia-se com muito medo e desanimada com seu trabalho.
Já sabia do que necessitava. Queria ser acolhida como “doente”, receber tratamento com calmantes, passar um tempo em repouso, um “auxílio-doença” e, se possível, depois, conseguir mudança de função dentro do seu trabalho, já que é funcionária pública concursada e não quer e nem pode ser despedida e nem abandonar o emprego de repente. Gostaria, como alternativa, de trabalhar como auxiliar, na bibilioteca da escola. Comentou que tal situação provocou um verdadeiro impasse em sua vida. Não tem como prosseguir, não tem como melhorar, não pode exercer com dignidade a profissão que escolheu, sente-se tolhida pela sociedade, a própria sociedade a quem deveria prestar seus serviços e de quem deveria receber os honorários e as eventuais comendas e condecorações pelos bons serviços prestados. Vem se sentindo, “para terminar”, um verdadeiro “lixo”, a escória dessa mesma sociedade que a emprega.

Quis saber, então, como eu poderia ajudá-la e se eu concordava com o “tratamento” que sugeriu.

Comecei lhe dizendo que entendia perfeitamente o que se passava com ela e que lhe emprestava minha total solidariedade. Essa brutalidade precisa acabar. Essa impunidade precisa acabar. Disse-lhe, porém, que não concordava com o que ela pensava com relação ao “diagnóstico” da situação, à sua “doença”. Não acho que você está doente, disse-lhe. Acho que quem está doente é a sociedade. São esses meninos. São os pais deles. É a sua Diretora. São seus outros colegas. Somos todos, enfim, que nos acovardarmos frente a essa situação. Precisamos deixar disso.

Deixar de nos acovardar em cascata.

Deixar de pensar em ganho ou perda imediatos.

Precisamos deixar de temer sofrer alguma retaliação ou perda imediata se dissermos e fizermos o que julgamos ser bom para esta ou aquela situação. Você precisa, sempre, se lembrar que você é uma professora, disse-lhe. Que você é mestra, repeti, que você tem, defende, cuida, de uma das profissões mais nobres da vida. Você não pode se esquecer disso. Você precisa brigar por aquilo em que acredita. Brigar por essa idéia, brigar pelo que escolheu, brigar pela integridade dela, cuidar dela como quem cuida, como quem é guardiã de alguma coisa preciosa, crucial, de total relevância. Brigar como quem briga pela própria vida. É preciso que você continue, disse-lhe, brigando pelo direito que você tem à liberdade de escolha, à liberdade de profissão, à vida enfim. Pelo direito de continuar indo à escola, pelo direito de ensinar, pelo direito de ser gente.

Continuei nessa mesma linha de raciocínio, até que, aparentemente, consegui inspirar nela a volta às suas raízes, ao seu primitivo desejo.

Prescrevi-lhe, sim, ao final da consulta, um calmante, leve, para tomar à noite, a fim de ficar menos ansiosa nesses primeiros dias e poder pensar com calma e clareza sobre tudo o que está necessitando.

Queria explicar, agora, porque frisei o “aparentemente”, ali em cima.
Sou psiquiatra há muitos anos. Geralmente um tratamento, um acompanhamento psiquiátrico às vezes de anos, começa com uma consulta semelhante a essa que descrevi. O “diagnóstico” do que se passa com determinada pessoa, vai sendo melhor elaborado, vai sendo mais detalhado, vai se tornando mais sofisticado com o tempo, apenas. Depende dos retornos do paciente. Depende, também, sempre, de como ele encarou, de como vivenciou, de como metabolizou, de como “aproveitou” minhas colocações. A personalidade total da pessoa influi nessas opiniões que vão se modelando aos poucos se tornando mais claras para ambos, tanto para o terapeuta como para o paciente.

Pois bem, digo-lhes agora: nesse primeiro momento, nunca se sabe como a pessoa vai voltar. Eu, pelo menos, não sei como essa jovem professora vai voltar à próxima consulta. Não sei, nem mesmo se vai voltar. Não sei o impacto que minha fala teve sobre ela. Não sei se a ajudou. Talvez sim, talvez não. Só ela vai poder me dizer. Ela vai precisar refletir sobre o que conversamos e sobre sua vida de forma mais aprofundada. E continuaremos a conversar quando voltar. Vou querer saber como está se sentindo, se o que eu lhe disse foi de importância ou se a ajudou em alguma coisa, se o remédio, paliativo, que lhe prescrevi, foi de alguma utilidade. E o tratamento continuará. Até quando? Até quando ela achar que eu posso ajudá-la.

Essa é a minha função.

Exercendo-a com lisura, com honestidade, seguindo minha intuição, meu conhecimento objetivo sobre minha especialidade e meu desejo inicial, estarei cumprindo minha função, estarei exercendo para mim e para o outro a política de “exigir com rigidez e veemência que o Brasil tome outro rumo”.
Desta vez, não me acovardei. Não prescrevi a ela o mais fácil, o que ela pensava que seria o melhor para ela. Não concordei com a cascata de submissão, de covardia, que se instaura entre as pessoas, atitude comum que testemunhamos corriqueiramente nas várias atividades sócio-profissionais.
Com essa simples atitude, coerente para mim, coerente com o que penso e sinto, cumpri minha obrigação, já que considero essa uma atitude terapêutica, propiciadora de insight e tranqüilização efetiva.

Não é sempre que isso acontece, digo-lhes, para terminar. Minha experiência de vida diz que somos todos seres meio acovardados, mais vezes do que gostaríamos ou que seria desejável. A vida é muito complexa.

Quando conseguimos não nos acovardar, quando conseguimos manter a coerência com o que pensamos, intuimos e desejamos no nosso relacionamento com o social, mesmo que as circustâncias do momento aparentemente sejam contra sua realização, certamente estamos exercendo nosso melhor.