Artigos

Os artigos desta parte do site não são artigos técnicos científicos nem de informação sobre questões psiquiátricas ou psicológicas estritamente falando.

São escritos que têm apenas a intenção de divertir e de inspirar reflexões nos leitores.

Retratam com ligeireza – são curtos, às vezes pequenos contos ou “causos” – algum aspecto pitoresco do dia-a-dia, uma faculdade psicológica qualquer em ação, uma maneira peculiar com que alguém lidou com um aspecto problemático dos relacionamentos humanos.

Por isso resolvi que devem constar de um site sobre psiquiatria e psicologia.

Porque, com efeito, todas as questões humanas interessam a essas disciplinas, mesmo e talvez até principalmente, as mais triviais.

Discriminar, explicitar, analisar, refletir sobre comportamentos, sentimentos, pensamentos, interações sociais, problemas da considerada “vida normal” e também da esfera da arte, é muito importante quando se pretende compreender a gênese dos transtornos psíquicos para melhor resolvê-los.

Por isso os artigos são tão variados e abordam temas aparentemente sem conexão uns com os outros. O que têm em comum são que comentam acontecimentos da vida.

Servem como lembretes, pontos de partida sobre questões que poderão ser mais aprofundadas se o leitor assim o desejar.

Exemplos? Uma piada, uma crônica, uma crítica sobre algum espetáculo ou sobre alguma obra de arte ou sobre um filme ou sobre um livro, uma reflexão inusitada sobre algum aspecto da vida, uma constatação, que às vezes pode ser surpreendente, de um mecanismo psicológico qualquer atuando dentro de si.

Tais artigos, escritos por mim e por outras pessoas, foram escolhidos para constar nesta parte do site porque os considero interessantes ou relevantes.

As pessoas que os lerem, terão uma primeira impressão a respeito do que pensa, como vê o mundo e talvez até como age, o autor do texto.

Ao colega – profissional de saúde – que quiser publicar seus artigos neste espaço, basta mandá-los para avaliação. Os artigos só serão publicados se assinados, no site não deverá existir artigos apócrifos. Os que não estiverem assinados são meus.

Poderei também repercutir ou criticar artigos vindos de revistas ou de jornais, da imprensa em geral e da própria Internet, que considero importantes. Note-se que, neste caso, vindos de pessoas não necessariamente profissionais da saúde mental mas de quaisquer pessoas com sugestões ou opiniões que considero instigantes sobre alguma questão social ou científica de relevância da atualidade.

Questões ou textos relacionados com a arte em geral e particularmente com a literatura serão sempre bem-vindas pois contribuem de forma significativa para a formação e desenvolvimento da personalidade através das variadas identificações que propiciam.

Possivelmente também serão abordadas questões políticas ou que tenham a ver com desenvolvimento psicossocial visto que são matérias que fazem parte daquelas que norteiam e inspiram o pensar e agir psiquiátricos e psicológicos.

Covardia

Em uma conversa sobre política com um amigo bem mais jovem, este citou uma frase de um cantor de quem gosta muito, “vocalista do Angra, Edu Falaschi”, sobre “exigir com rigidez e veemência que o Brasil tome outro rumo”.

Desafiou-me a comentar a frase, coisa que faço neste artigo.

Através de um pequeno exemplo, de uma atividade psiquiátrica corriqueira, uma simples consulta ambulatorial, posso exemplificar o que penso a respeito dessa questão importantíssima, complexa, mista, de cidadania e ao mesmo tempo de individualidade, de exercício de atividade produtiva, de bem-estar psíquico e físico, de convivência, de atuação política, questão essa que tem a ver com a frase lembrada por aquele amigo.

O exemplo é o seguinte: atendi outro dia, médico psiquiatra que sou, uma paciente que veio de uma cidade próxima a São Paulo, encaminhada por seu médico clínico geral, para avaliação de sérios sintomas de depressão e estresse. Sua queixa era de não conseguir mais dormir direito à noite, não conseguir sentir prazer com seu trabalho, andar triste, desanimada e chorando muito quase todo dia. Tal estado de espírito se estendia a todas as outras atividades de sua vida. Não conseguia mais cuidar da casa, dos filhos, do marido. Veio para se tratar dessa “depressão”, encaminhada pelo colega clínico geral, a fim de se consultar com um “especialista em estresse”.

Questionada sobre o que estava causando isso na sua opinião, disse-me que, como professora, tinha que aguentar, sem conseguir fazer nada, seus alunos adolescentes, com atitudes delinquentes dentro da sala de aula. Referiu sentir-se, hoje em dia, absolutamente impotente. Não tem mais conseguido exercer o que sempre considerou o ofício de sua vida. Alguns dos meninos, sim, “meninos ainda – apesar de quase rapazes” – entram com estiletes, facas, até revólver nas salas de aula; ameaçam os professores e outros colegas com quem implicam e ninguém, absolutamente ninguém, toma alguma atitude concreta para contê-los. Alunos de 12, 13 anos. Ela se queixou diversas vezes à diretora da escola, conversou com outros colegas. Conseguiu apenas promessas vagas de que a diretora iria chamar os pais dos garotos e conversar com eles na tentativa de mudar esse estado de coisas, e só.

Sentia-se com muito medo e desanimada com seu trabalho.

Já sabia do que necessitava. Queria ser acolhida como “doente”, receber tratamento com calmantes, passar um tempo em repouso, um “auxílio-doença” e, se possível, depois, conseguir mudança de função dentro do seu trabalho, já que é funcionária pública concursada e não quer e nem pode ser despedida e nem abandonar o emprego de repente. Gostaria, como alternativa, de trabalhar como auxiliar, na bibilioteca da escola. Comentou que tal situação provocou um verdadeiro impasse em sua vida. Não tem como prosseguir, não tem como melhorar, não pode exercer com dignidade a profissão que escolheu, sente-se tolhida pela sociedade, a própria sociedade a quem deveria prestar seus serviços e de quem deveria receber os honorários e as eventuais comendas e condecorações pelos bons serviços prestados. Vem se sentindo, “para terminar”, um verdadeiro “lixo”, a escória dessa mesma sociedade que a emprega.

Quis saber, então, como eu poderia ajudá-la e se eu concordava com o “tratamento” que sugeriu.

Comecei lhe dizendo que entendia perfeitamente o que se passava com ela e que lhe emprestava minha total solidariedade. Essa brutalidade precisa acabar. Essa impunidade precisa acabar. Disse-lhe, porém, que não concordava com o que ela pensava com relação ao “diagnóstico” da situação, à sua “doença”. Não acho que você está doente, disse-lhe. Acho que quem está doente é a sociedade. São esses meninos. São os pais deles. É a sua Diretora. São seus outros colegas. Somos todos, enfim, que nos acovardarmos frente a essa situação. Precisamos deixar disso.

Deixar de nos acovardar em cascata.

Deixar de pensar em ganho ou perda imediatos.

Precisamos deixar de temer sofrer alguma retaliação ou perda imediata se dissermos e fizermos o que julgamos ser bom para esta ou aquela situação. Você precisa, sempre, se lembrar que você é uma professora, disse-lhe. Que você é mestra, repeti, que você tem, defende, cuida, de uma das profissões mais nobres da vida. Você não pode se esquecer disso. Você precisa brigar por aquilo em que acredita. Brigar por essa idéia, brigar pelo que escolheu, brigar pela integridade dela, cuidar dela como quem cuida, como quem é guardiã de alguma coisa preciosa, crucial, de total relevância. Brigar como quem briga pela própria vida. É preciso que você continue, disse-lhe, brigando pelo direito que você tem à liberdade de escolha, à liberdade de profissão, à vida enfim. Pelo direito de continuar indo à escola, pelo direito de ensinar, pelo direito de ser gente.

Continuei nessa mesma linha de raciocínio, até que, aparentemente, consegui inspirar nela a volta às suas raízes, ao seu primitivo desejo.

Prescrevi-lhe, sim, ao final da consulta, um calmante, leve, para tomar à noite, a fim de ficar menos ansiosa nesses primeiros dias e poder pensar com calma e clareza sobre tudo o que está necessitando.

Queria explicar, agora, porque frisei o “aparentemente”, ali em cima.

Sou psiquiatra há muitos anos. Geralmente um tratamento, um acompanhamento psiquiátrico às vezes de anos, começa com uma consulta semelhante a essa que descrevi. O “diagnóstico” do que se passa com determinada pessoa, vai sendo melhor elaborado, vai sendo mais detalhado, vai se tornando mais sofisticado com o tempo, apenas. Depende dos retornos do paciente. Depende, também, sempre, de como ele encarou, de como vivenciou, de como metabolizou, de como “aproveitou” minhas colocações. A personalidade total da pessoa influi nessas opiniões que vão se modelando aos poucos se tornando mais claras para ambos, tanto para o terapeuta como para o paciente.

Pois bem, digo-lhes agora: nesse primeiro momento, nunca se sabe como a pessoa vai voltar. Eu, pelo menos, não sei como essa jovem professora vai voltar à próxima consulta. Não sei, nem mesmo se vai voltar. Não sei o impacto que minha fala teve sobre ela. Não sei se a ajudou. Talvez sim, talvez não. Só ela vai poder me dizer. Ela vai precisar refletir sobre o que conversamos e sobre sua vida de forma mais aprofundada. E continuaremos a conversar quando voltar. Vou querer saber como está se sentindo, se o que eu lhe disse foi de importância ou se a ajudou em alguma coisa, se o remédio, paliativo, que lhe prescrevi, foi de alguma utilidade. E o tratamento continuará. Até quando? Até quando ela achar que eu posso ajudá-la.

Essa é a minha função.

Exercendo-a com lisura, com honestidade, seguindo minha intuição, meu conhecimento objetivo sobre minha especialidade e meu desejo inicial, estarei cumprindo minha função, estarei exercendo para mim e para o outro a política de “exigir com rigidez e veemência que o Brasil tome outro rumo”.

Desta vez, não me acovardei. Não prescrevi a ela o mais fácil, o que ela pensava que seria o melhor para ela. Não concordei com a cascata de submissão, de covardia, que se instaura entre as pessoas, atitude comum que testemunhamos corriqueiramente nas várias atividades sócio-profissionais.

Com essa simples atitude, coerente para mim, coerente com o que penso e sinto, cumpri minha obrigação, já que considero essa uma atitude terapêutica, propiciadora de insight e tranqüilização efetiva.

Não é sempre que isso acontece, digo-lhes, para terminar. Minha experiência de vida diz que somos todos seres meio acovardados, mais vezes do que gostaríamos ou que seria desejável. A vida é muito complexa.

Quando conseguimos não nos acovardar, quando conseguimos manter a coerência com o que pensamos, intuimos e desejamos no nosso relacionamento com o social, mesmo que as circustâncias do momento aparentemente sejam contra sua realização, certamente estamos exercendo nosso melhor.

A Família

A família é o primeiro núcleo gerador de identificações, que vão, em seu conjunto, permitir a formação da personalidade.

Identificação, no sentido da teoria psicanalítica, significa “tornar-se igual a”, trata-se de um mecanismo psicológico que faz com que tornemos nossa, uma característica que pertence a outra pessoa e que, por algum motivo, “gostamos” e nos “apropriamos” tornando-a nossa.

Esse processo de identificação e de formação da personalidade é característica dos seres humanos.

Pode-se dizer, portanto, que a família é o primeiro núcleo gerador de “humanidade”.

Humanidade, palavra aqui colocada em contraposição à animalidade.

SER “HUMANO”.

O que é isso? Sabemos apenas que para nos tornarmos humanos, dependemos primariamente, dos cuidados da família. Sem ela, não se sabe o que seríamos.

Existe um filme muito interessante, chama-se “O enigma de Kaspar Hauser” de um cineasta chamado Herzog, que especula, de uma forma muito instigante, o que aconteceria, como seria possível uma pessoa se desenvolver sem ninguém cuidando dela, sem ninguém que a introduzisse ao mundo humano, da civilização. Kaspar Hauser, o protagonista do filme, existiu realmente. Foi apenas mantido vivo, não se sabe por quem, alimentado e agasalhado, porém sem nenhum outro contato com seres humanos.

O filme é a história de sua vida, desde que foi encontrado em uma praça, portando um cartaz, até sua morte em circunstâncias misteriosas. Seu progresso, no sentido de “humanizar-se”, o impacto que causava nas pessoas e o impacto que as pessoas causavam nele, pode ser visto no filme e é exatamente isso que o torna inesquecível.

Lembrei-me desse filme quando comecei a pensar neste artigo, porque – deixando de lado exceções absolutamente raras e estranhas como a do Kaspar Hauser – já se sabe que, nesse processo de humanização dos seres humanos, as identificações iniciais que constituem o núcleo da personalidade, decorrem dos primeiros relacionamentos (a psicanálise chama de “relações de objeto”), exatamente com os componentes da família, que farão com que o sujeito tenha traços vindos de diferentes pessoas, percepções do mundo e da realidade que, originalmente, eram dos pais e demais familiares.

O processo todo se assemelha ao que ocorreu conosco fisicamente, quer dizer, o modelo físico, de surgimento da nossa estrutura corporal, também vale para se entender como se estrutura o modelo psicológico.

Não se diz, por exemplo, que determinado sujeito tem “o nariz do pai, os olhos da mãe, o andar do avô?”

Da mesma maneira, os filhos têm aspectos psicológicos absolutamente diferentes dos pais, porém formados por aspectos vindos dos modelos originais (coincidência de alguns desejos, organização dos mesmos, defesas psicológicas, e maneiras de se relacionar com outras pessoas).

Tudo funciona como se organizássemos novos “desenhos”, com traços e cores, inúmeras “partículas” vindas de outros, assim como num caleidoscópio os desenhos e formas resultantes vêm do reagrupamento de pequenos pedaços de papel originalmente pertencentes a outros formatos e desenhos.

Esse processo, que é uma espécie de “colagem”, de “cópia” modificada do original, que, aliás, começa com imitação pura e simples mesmo, de um comportamento, de um jeito de pensar ou de sentir, vai ganhando modificações até se tornar parte integrante da nova pessoa, um novo e único “eu”.

O conjunto de inúmeras identificações na sua origem semelhantes a esse exemplo físico citado, fará com que surja uma nova personalidade com estrutura mista, híbrida, totalmente diferente dos originais, porém deles derivada.

Nossa personalidade, o que chamamos de “eu”, é o resultado, portanto, de todas as identificações que fizemos, de todas as remontagens psicológicas que processamos durante a vida.

Compreendendo então que todos temos algumas características psicológicas que herdamos dos nossos pais e de outros membros da nossa família de origem, a questão que se coloca é saber o que faz com que às vezes, nesse processo de constituição de uma nova pessoa, alguma coisa se perca ou algum detalhe desconhecido se agregue de forma a originar “defeitos” os chamados “transtornos de personalidade”.

Que detalhes são esses? Que mecanismos permitem que isso aconteça? É possível evitar isso?

Principalmente, é possível “consertar” esse fato?

Esse é o grande enigma da existência. A compreensão desse processo é uma das grandes ambições da psicologia. As reflexões sobre a origem de determinados comportamentos patológicos observados em pessoas com problemas, – quando consideramos também a dimensão psicológica, não apenas as alterações na dimensão orgânica, neuronal, atualmente muito valorizadas pela psiquiatria biológica – originaram diversas teorias que chamamos de psicodinâmicas, que buscam as causas desses comportamentos e sensações patológicas em falhas no desenvolvimento psicológico.

Procurando compreender esse processo de desenvolvimento, seus pontos-chave, seus entraves, os mecanismos que o compõe, do que é constituído, estaremos também adquirindo maiores possibilidades de influir na educação de nossos filhos e também no tratamento de problemas psicológicos pois estes nada mais são que sinais e sintomas decorrentes de falhas nesse processo.

Para isso é necessário o estudo das teorias que tentam dar conta da formação da personalidade, particularmente desenvolvimentos teóricos psicanalíticos e também análise de padrões comportamentais repetitivos de ação e inter-relacionamento dos familiares que podem gerar comportamentos também repetitivos, inadequados nos filhos.

Appaloosa – Uma Cidade Sem Lei

Um grande faroeste. Diferente dos tradicionais, este moderno bangue-bangue não se preocupa exclusivamente com os afazeres masculinos, tem uma temática mais delicada, apresenta nuances psicológicas – no geral pouco ou nunca focadas nos filmes do gênero – dos relacionamentos entre homens e mulheres.

Trilha sonora condizente com o gênero, ótima, ambientações perfeitas ocorrendo na época da transição entre o lampião e a luz elétrica.

O roteiro, de Roberto Knott e Ed Harris, também o diretor do filme e um dos atores principais, o mocinho, muito bem resolvido.

A pequena cidade, Appaloosa (que na verdade deriva do nome de uma raça de cavalos aprimorada primeiro pelos chineses e depois pelos índios), típica do Oeste norte-americano, vive ameaçada por um de seus cidadãos – poderoso e violento dono de um rancho – e por seus capangas que nada respeitam. Quando tal bandidão mata o xerife e seus ajudantes à queima-roupa, covardemente, os moradores, intuindo que seria ele o responsável pelo desaparecimento do xerife, resolvem contratar dois justiceiros, a fim de instaurar a lei na cidade.

Contratam Virgil (Ed Harris) e Everett (Viggo Mortensen), justiceiros, para botar ordem no lugar.

Os dois tornam-se os novos representantes da lei, xerife e auxiliar, nada inocentes, com grande experiência no ramo.

Vão dando conta do recado, com os tropeços e dificuldades de praxe, angariando simpatias aqui, lidando com animosidades ali, fazendo inimigos acolá, como de costume nesses filmes.

Tudo vai correndo normalmente, até que chega à cidade uma formosa viúva (Allison – Renée Zellweger, muito bem neste filme) que logo chama a atenção do xerife Virgil, acostumado – como se fica sabendo depois – apenas com prostitutas e índias.

Aqui aparecem algumas diferenças entre os filmes clássicos e este. Respostas às eternas interrogações masculinas sobre o universo feminino – o quê, afinal, move as mulheres? – e a pergunta correspondente sobre si mesmos – o que vemos nelas? Por que nos apaixonamos? – são tentadas.

O mocinho responde concretamente à essa questão, formulada pelo amigo em determinado momento do filme, com perplexidade, incrédulo sobre o que constata na própria organização do seu desejo. Cita cinco ou seis coisas, não mais que isso, que explicam e justificam o crescente amor pela moça, entre elas:

  1. Ela toma banho todas as noites é limpinha e saudável;
  2. Ela toca piano;
  3. Ela sabe cozinhar;
  4. É bonita;
  5. Ela come com educação.

Constata-se que o edifício do amor masculino do mocinho está alicerçado em poucos pilares.

A uma mulher assim perdoa-se tudo, subentende-se, das declarações do protagonista.

Não tem tanta importância se é gananciosa, egoísta, insegura, falsa, manipuladora, infiel (dorme com o inimigo, tenta seduzir o amigo).

Preencheu os cinco atributos necessários e suficientes? Então pronto: quero essa mulher assim mesmo, como já disse o samba.

Só por esse pequeno detalhe já se pode verificar que o filme pode proporcionar alguns questionamentos sobre os desejos masculinos e o que acontece quando são ou não realizados.

Talvez essa seja a utilidade do filme: propiciar um começo de avaliação dos próprios desejos, que, na verdade, é o que se espera de toda obra de arte, filmes aqui incluídos.

Como se estrutura a intersecção de desejos nos relacionamentos humanos? Vale a pena ter relacionamentos prolongados? Os homens são diferentes entre si mas todos iguais, na verdade? Os desejos são construídos sobre poucos pilares, sempre os mesmos ou diferentes em cada um dos homens? Qual é o máximo que se pode suportar de dissabor para manter um relacionamento? As virtudes de natureza moral e ética, particularmente a fidelidade, são as mais buscadas quando os homens pensam sobre o que gostarim de encontrar numa mulher?

Quanto à última pergunta, o mocinho do filme diz que não, já que resolveu ficar com ela como esposa.

O amigo do mocinho, que se recusou a traí-lo com a viúva insegura e safada, apesar da proposta explícita dela, por fidelidade ao amigo, fiel como seria ótimo que fossem todas as amizades, relutantemente concorda, apesar de anunciar para a moça com quem estava saindo que para ele esse arranjo não serviria.

Para consolar o xerife traído, apresenta uma explicação detalhada, com coerência interna, sobre a psicologia da moça, que explica seu comportamento (outra vez aquilo que já disse em artigo anterior, sobre a necessidade que se tem de ter explicações – ainda que não totalmente verdadeiras – sobre comportamentos humanos).

Quando a expôs, naquele difícil momento, fez-se a luz.

A compreensão do mocinho – e talvez da platéia masculina – como que desculpa qualquer deslize ético da moça.

Com sua ação – implicitamente – diz que a fidelidade não é a virtude mais importante que se busca numa mulher.

O filme mostra os desdobramentos desse tipo de compreensão, de “escolha”, com um final eticamente irrepreensível – apesar de utópico – no que concerne às atitudes relacionadas, decorrentes da amizade.

Salva-se a honra, descomplica-se o amor, pelo menos temporariamente, graças à intervenção alucinada da amizade.

E para você, prezado leitor? Será que também funciona assim? Com quem se identificaria mais?

Ele Não Está Tão A Fim De Você

Dois filmes sobre o onipresente desejo de compreensão do universo amoroso entre homens e mulheres, ambientados em locais totalmente diferentes no tempo e no espaço.

Interessante como os roteiristas dos filmes atuais (ambos filmes de 2008) têm trabalhado bem no sentido de prover coerência e explicabilidade aos relacionamentos humanos que são incoerentes e inexplicáveis por definição.

O amor e sua irmã mais incisiva e agressiva, a paixão, que não têm explicação, parecem tê-la quando assistimos esses filmes.

O dito italiano: “Si non è vero è bene trovato”, cabe aqui perfeitamente.

Gostamos de histórias compreensíveis, com começo meio e fim.

Precisamos delas. Têm um efeito tranqüilizante, ficamos com a sensação de que controlamos as emoções primitivas de amor, no caso, mas também do ódio, e não que somos controlados por elas – lancinantemente atravessados – seres humanos que somos, absolutamente entregues aos desvarios dessas impiedosas algozes.

Olhem que bonitinho:

O primeiro filme chama-se “Ele não está tão a fim de você” (He’s Just not that into you) – EUA/2008, direção Ken Kwapis, com um elenco cheio de mulheres muito bonitas, cujas histórias se entrelaçam de diversas maneiras, carpintaria literária da indústria do cinema, cheia de nuances, feita por roteiristas ágeis que conseguem dar um sentido coerente e interessante a todas as histórias.

Sinopses completas com os nomes das atrizes e outras questões técnicas, facilmente localizáveis no Google.

Todas as moças têm uma série de problemas com homens.

Uma delas, a Gigi, procura tenazmente um sujeito para ter um relacionamento sério.

Vive levando bolo dos cafajestes de plantão, até que acha, meio sem esperar, um rapaz que vai ser seu amor eterno (a fantasia dela a respeito do amor).

O relacionamento começa com uma amizade, aconselhamentos sobre “sinais do comportamento masculino que revelam que ele não está tão a fim de você como faz pensar” dele a ela, vai se adensando, até se transformar, no final, num caso amoroso bem sucedido.

Claro que o sujeito erra tudo, o tal feitiço que ele tenta ensinar se volta contra o feiticeiro – que ele pensa que é – enredado pela própria mágica.

Aí está a graça da história, a constatação de que ninguém consegue dar conta de explicar tudo.

Também precisamos disso. Da sensação de que ninguém consegue ou conseguirá, explicar, nada do que acontece com a gente.

Contradição? Sim. Então, se existe contradição, existe conflito. E qual é ele afinal?

Simples: Precisamos que nos dêem dicas de como entender os outros. Mas, no fundo, não queremos entender nem ser entendidos, queremos que todas nossas atitudes sejam incompreensíveis, não queremos que exista sabichão nenhum, ditador indesejável nenhum, que tenha algum poder sobre nós. Queremos, …. mas não queremos.

Certo. Certo?

Voltando ao filme, os dois terminam juntos, claro. A Gigi encontrou seu amado.

Erraram todos os que pensavam que sabiam alguma coisa. Vence, aqui, a imprevisibilidade que almejávamos.

Os outros casos também se resolvem “bem”, pode-se dizer que o filme explora diversas formas de resoluções amorosas bem sucedidas, dentro das suas respectivas dimensões.

Existem soluções para muitos gostos e muitas expectativas.

Sempre se sai contente, de filmes desse tipo, comédias levinhas bem arquitetadas.

As gentes saem se perguntando qual estereótipo amoroso faltou ser incluído.

Tudo muito inteligente.

Somos todos roteiristas amadores com pretensões a acrescentar ao roteiro original, novas contribuições, novas histórias e novas compreensões sobre a vida.

Mas, não é para isso mesmo que serve a arte?

Para nos fazer pensar e nos fazer classificar e priorizar melhor os fatos da vida? Para desenvolver nossa inteligência?

Pois.

O outro filme, “Appaloosa – uma cidade sem Lei”, comentarei em outro artigo com esse nome.

Melancolia – filme de Lars Von Trier

O cineasta dinamarquês Lars Von Trier é um iconoclasta por vocação.

Todos os seus filmes agitam as tradições cinematográficas de uma ou de outra maneira porque ele as modifica em seus fundamentos. Um exemplo disso é a fórmula que encontrou para “Dogville”: não existem cenários, os diversos settings onde se realizam as cenas são apenas desenhados no chão. Paradoxalmente não se sente falta deles. A trama impactante se desenrola normalmente, não precisamos de contextos cenográficos para acompanhá-la, compreendê-la e admirá-la.

Seus enredos desafiam os conceitos psicológicos, sociais, políticos, arduamente conquistados pela humanidade no decorrer da nossa história e que estão arraigados no nosso modo de viver contemporâneo. Abalam nossas crenças em instituições de maneira muito peculiar, em sequências de beleza visual extraordinária.

Ele é contra paradigmas por princípio, contra quaisquer teorias que tentem de alguma forma explicar ou pelo menos dar conta de um aspecto, de uma questão humana. Está sempre na contramão do já feito, dos clichês, da mediocridade, sempre tentando quebrar toda corrente de pensamento institucionalizada, cristalizada. A Psicanálise, a Filosofia, a Física são frequentes alvos da sua iconoclastia. Constrói seus personagens sempre com alguma intenção de denúncia de clichê, que fica muito clara quando observamos suas interações nos ambientes cênicos.

Acontece que não se pode derrubar tudo, sempre. Ou pelo menos não tudo de uma vez. Algumas demolições precisam ser preparadas para que aconteçam em ambientes propícios.

Existem algumas condenações, alguns julgamentos de valor da história da humanidade, que são definitivos, imperturbáveis, devem permanecer inalteráveis, têm mutabilidade muito próxima a zero. A condenação eterna, o exílio definitivo da ciranda das idéias humanas, para quem assassinou covardemente, com requintes de crueldade, trinta milhões de pessoas, por exemplo.

Lars Von Trier quis demolir também, essa não escrita lei constitucional da humanidade, na coletiva de imprensa do Festival de Cannes de 2011, quando afirmou que “entendia Hitler”, levianamente, histrionicamente, ao lado de uma Kirsten Dunst visivelmente constrangida, como resposta a uma pergunta provocativa qualquer? Quem sabe?

Deu no que deu. Por causa dessa fala infeliz, atabalhoada, expulsaram-no do Festival de Cannes, passaram a considerá-lo persona non grata, apesar de se saber que é iconoclasta de carteirinha e que sua iconoclastia é só jogo de cena, inofensiva. Deixaram, porém, que o filme continuasse na competição e Kirsten Dunst interpretando a personagem Justine, ganhou o prêmio de melhor atriz do ano. Acontece que Justine é Lars Von Trier. A decisão do festival de não relevar a idiotice do cineasta, é análoga, especular à do próprio, mas de um reacionarismo compreensível. Como disse anteriormente, o jogo do convívio social tem suas regras, algumas invioláveis.

É levando em consideração essas características de personalidade do seu diretor – por se tratar de um filme autoral – que vou tecer considerações mais detalhadas sobre o filme Melancholia de Lars Von Trier.

Para começar, sugiro uma espécie de treino para olhar para acontecimentos da vida com os olhos do diretor, com os olhos de alguém que se incomoda com a cristalização de determinadas teorias, de determinados contextos sociais. Tentemos pensar um pouco como o diretor. Tem que haver no nosso pensamento, uma certa implicância com o estabelecido, tem que haver insatisfação com respostas científicas parciais que se consideram definitivas sobre fenômenos psicológicos ou físicos.

Vejamos alguns fatos misteriosos da vida no nosso planeta. O primeiro deles, um documentário que vi há pouco tempo em um canal de TV, aparentemente não tem nada a ver com o filme mas me lembrei imediatamente do Melancholia quando o vi, por ser uma questão que muito interessa à ciência e que continua misteriosa. Trata-se do seguinte:

Borboletas Monarca saem dos EUA com destino ao México, viajando mais de 2.200 km, para fugir do inverno. O fenômeno é monitorado por cientistas, não há muito tempo; apenas em 1975 se descobriram os locais certos de invernadouro delas no México. Bicho tão frágil solto ao vento, corpinho franzino, inadequado para a enorme travessia, dezenas de milhões de borboletas, fazem o trajeto, juntas, voando por aproximadamente um mês para chegar ao seu destino. Como se explica isso? Que espécie de força as induz à viagem? O que as mantém juntas, como sabem para onde se dirigir? Por que voltam, depois? Quem é o chefe que comanda essa ida e volta num balé tão perfeito e que ocorre sem ensaio nenhum?

Outro fato: a melancolia, quadro psiquiátrico grave, incomoda a humanidade há muito tempo. A palavra se origina do grego, (Houaiss) melagkholía,as lit. ‘condição de ter bile negra’, donde ‘humor negro, melancolia’, de mélas,aina,an ‘negro’ + kholê,ês ‘bile’. Freud, desenvolvendo sua teoria psicanalítica, nunca perdeu de vista o quadro clínico tão preocupante; por muitos anos refez, repensou, ajustou e articulou seus conceitos, de maneira a construir o início de um todo coerente que pudesse contribuir para compreender melhor suas causas e os mecanismos psicológicos intrínsecos, que a explicassem e que a difenciassem do luto e de uma depressão simples. Acreditava numa causa psicológica para a mesma. Essa idéia persiste, em parte, porém, apesar de certa coerência nessa tentativa psicanalítica de Freud e dos outros autores que continuaram a desenvolver, corrigir e somar conhecimentos a essa pretensa estrutura patológica, continua sendo um mistério ainda hoje, século XXI. A psiquiatria moderna, contando com suas espetaculares recentes teorias sobre o funcionamento da rede de neurônios e com o poderoso arsenal terapêutico da psicofarmacologia atual, ainda não conseguiu decifrá-la em seus mecanismos íntimos, nem dar conta do quadro clínico complexo que não se resolve nunca totalmente.

Um último fato: deixando de lado a questão patológica, a simples questão amorosa que tanto bem e mal causa à humanidade, também continua enigmática, com filósofos, artistas, poetas, escritores, cientistas, elaborando teorias e mais teorias para explicar o Amor, seus rompantes, suas desavenças, seu início, seu fim.

Pois bem, estes são exemplos de fenômenos até hoje mal explicados, as teorias inventadas e descobertas para explicar suas causas com o sentindo de minimizar seus efeitos, são todas muito precárias quando observadas de perto. É um assunto fascinante para se fazer um filme.

Quem, do cinema, poderia se interessar por coisas do gênero?

Lars Von Trier, claro.

Não fica difícil verificar que o filme Melancholia é outro brado retumbante – não brasileiro, infelizmente, mas dinamarquês – contra a ignorância humana, uma alegoria que retrata a ruptura e queda total de todas as teorias e hipóteses científicas, filosóficas, psicanalíticas sobre a experiência humana.

Não é o fim do mundo concreto que Lars Von Trier quer mostrar.

A tese que defendo é que o autor pretende, com o filme, fazer o que sempre faz: uma espécie de inventário do que conseguimos até o momento, demonstrar a maneira de lidar com esses assuntos nesta nossa época e sugerir no final do filme a demolição total de tudo que foi construído, a volta a um estado primitivo necessário para podermos progredir melhor na nossa compreensão da vida, já que as respostas todas que conseguimos formular em dez mil anos de história, com a ajuda da ciência, da filosofia e da psicanálise, não são sempre verdadeiras e nem totalmente satisfatórias.

Desse ponto de vista ficam mais explicáveis determinadas cenas que aparentemente não se casam bem com o contexto geral do assunto do filme. Veja-se esta interpretação: nossas melhores teorias científicas e filosóficas, nos trazem o conforto de uma limusine. Nós a inventamos e construímos estradas onde elas deslizam suavemente, levando-nos a muitos lugares de forma extremamente confortável. Resolvemos uma porção de problemas com elas, tornaram nossa vida melhor. Mas não é sempre que podemos utilizá-la.

As estradas que o Universo nos apresenta não são todas asfaltadas e largas.

São, na maioria das vezes, extremamente tortuosas, pequenas, impróprias para serem percorridas por limusines. Um dia teremos que jogar fora a maravilha que tanto trabalho nos deu para inventar e que tanto nos agrada, para continuar nossa viagem a pé, até que inventemos ou descubramos outras alternativas de transporte rápido para nosso percurso.

Essa é uma das melhores alegorias secundárias do filme.

As cenas que mostram a dificuldade do casal em conseguir passar com a limusine pelo estreito e tortuoso caminho de chegada ao castelo, são impagáveis. Não aconteceu ali a necessária congruência entre o caminho e o veículo, da mesma forma que não há encaixe possível entre a brilhante e confortável limusine psicanalítica e a tortuosa estradinha da melancolia.

Olhemos, agora, para Justine.

Quando vi o filme pela primeira vez, fiquei muito incomodado e não percebi, de imediato, o porquê do meu incômodo. Alguma coisa que emanava daquela personagem me atrapalhava muito. Percebi, depois. É que ela não se parece com nenhum modelo humano ao qual estou acostumado. Mágica, misteriosa, meio bruxa, com uma série talentos e poderes, de adivinhação, por exemplo, de inteligência aguda, não se enquadra em nenhum estereótipo, em nenhuma teoria psicológica; o desenho da sua personalidade, suas condutas, são totalmente imprevisíveis. Não liga para nada, age sem ter motivos compreensíveis, aparentemente não é movida por convicções filosóficas, sociológicas, não tem desejos claros, não tem ética, não tem fins, não se articula nem está preocupada em se articular socialmente, não goza, não ri, não chora, não seduz, não esperneia. Sofre. Mas até seu sofrimento é estranho, meio melancólico mas não; também não é psicótica nem psicopata.

A grande sacada do cineasta, neste filme, foi a construção dessa personagem. Justine. Todos os outros são “escadas’ destinadas a mostrar, através do relacionamento com ela, a estranheza do seu comportamento psicológico e social.

Justine incomoda.

Deslocada, uma espécie de ser estranho, não submetida às mesmas regras que a maioria de nós, uma bruxa que congrega forças estranhas, uma supermulher, uma criatura linda porém assustadora. O que costuma acalmar nossas angústias, nossas dúvidas sobre a vida, nos deixar mais tranquilos, nos ajudar a suportar melhor a vida? Um amor, livros, insights obtidos com psicanálise, remédios, filosofia, música, filmes, festas, companhia de amigos e da família, esportes, viagens, lugares legais, reconhecimento. Nada disso ajuda Justine. Ela continua mal, absurdamente infeliz, desconcertantemente infeliz, no dia do seu próprio casamento, naquele lugar maravilhoso, rodeada por seus familiares, chefe, colegas, o namorado, amada por todos.

Infeliz, “melancólica”. Até tomar seu “banho de lua”, no caso do filme, seu “banho de Melancholia”, quando então parece que as coisas entram em seus eixos, ela fica em paz, entra numa harmonia maior com tudo e com o Universo. O banho de melancholia renovou suas forças, devolveu-lhe a capacidade de conviver consigo mesma e com os outros, de se renovar, de aceitar mais as limitações das pessoas e das coisas, de estar mais em paz.

Aqui está a conclusão que Lars Von Trier nos apresenta: Justine é a encarnação da recusa, do desprezo pelos padrões psicológicos e sociais; é movida por forças estranhas, por forças cósmicas, talvez como as borboletas Monarca que coloquei no começo como exemplo de comportamento inexplicável. Tais forças ainda não foram nem reconhecidas nem mapeadas apesar de todo esforço da humanidade. Justine não é explicável pela Psicanálise.

Sua irmã, Claire, pelo contrário, estamos cansados de conhecer, se encaixa perfeitamente às teorias até agora criadas, é reconhecível até pelo senso comum: criatura neurótica, desajustada no fundo, mas doce, submissa, esforçada em suas mal-ajambradas convicções, porém confortável na sua adequação possível ao marido e a todas as coisas. Precisa, sempre, de outra pessoa para lhe explicar o que se passa em sua existência, para lhe mostrar como viver sua vida, para a acalmar no seu apavorante vislumbre de que é uma pessoa sem importância, sem peso, que não faz nada acontecer, que é medrosa e dependente.

Claire e o contraponto ideal à incompreensível psicologia da irmã.

Ponto para Lars Von Trier, de novo. É por isso que já disse uma vez, em outro artigo, que ele é antes de tudo um grande construtor de personagens.

Essas duas irmãs, simbolizando a aceitação possível e a rejeição das teorias sobre a personalidade, das teorias sobre a vida em geral, a aceitação e a rejeição das conveniências sociais, são personagens de um grande autor, um autor que conhece os meandros da caracterização de personagens e da roteirização cinematográfica.

 

Além, é claro, do profundo conhecimento sobre as mumunhas cinematográficas em geral.

Demais o início do filme, sob o prólogo da ópera de Wagner Tristão e Isolda, não? Ótima a escolha da música de Wagner para sonorizar o prólogo do filme, o resumo inicial, em câmera lentíssima de tudo o que vai se desenrolar em seguida. Por que Wagner e não Bach? Porque Wagner é o supra-sumo da música tonal da idade moderna, levou aos píncaros da glória a música tonal ocidental codificada no “Cravo bem temperado” por Bach. A música, como a limusine, serve para mostrar o término de um processo evolutivo, que se iniciou em um momento com algo simples, uma bicicleta até chegar à limusine, na música codificada por Bach até chegar a Wagner. Além disso, Tristão e Isolda refletem os complexos velhos temas tão banais da história amorosa dos seres humanos. É justo, então, já que precisamos de novos paradigmas de convivência, inclusive de convivência amorosa, que a derrocada dos velhos seja acompanhada sonoramente pelo que de melhor se conseguiu com as ciências musicais da época.

Espetaculares as iluminações dos amplos espaços noturnos dos jardins do castelo e do banho de melancolia da Justine, não? Efeitos da “Noite Americana” provavelmente; filmado de dia e transformado em noite com as artimanhas cinematográficas já de longo tempo manjadas. Uma citação ao percurso da evolução cinematográfca?

Para finalizar, o pôster internacional de apresentação do filme é referência à pintura de Sir John Everett Millais – Ofélia, que está na Tate Britain em Londres. O quadro inspirador mostra a moça, com os olhos abertos, morta, deitada num riacho. A pintura funciona como uma ilustração, conversa com Shakespeare, mostra o resultado de outra tragédia amorosa, a namorada suicida de Hamlet, outro mistério literário sobre o qual muito se escreveu e muito se escreverá. Por que fazer referência a esse pintor? Por que a escolha específica desse pintor? Porque ele também renegou e revolucionou a arte acadêmica de seu tempo, como Lars Von Trier faz com o cinema atual.

John Everett Millais – Ofélia

John Everett Millais – Ofélia

Dogville

Trata-se de um filme que, como toda grande obra de arte, admite muitas formas de compreensão e interpretação.

Uma análise sociológica, por exemplo, já feita por vários autores, considerando ângulos diferentes desse mesmo foco (sociológico), permitiria dizer que se trata de uma crítica nem tão velada assim, aos EUA, no sentido de retratar a forma intolerante como praticam seu poder e liderança sobre o resto do mundo.

Diversas considerações e ilações filosóficas e psicológicas podem ser efetuadas. O que efetivamente importa é que é um filme acachapante, que merece ser estudado em detalhes.

Existe um making off sobre a forma como seu diretor conduziu o processo de filmagem, alugando um galpão nos arredores da cidade e mantendo o grupo de atores em trailers, meio confinados, objetivando colocar em prática a sua visão sobre “interpretação”: não “representar o personagem”, mas, efetivamente, tornar-se, “ser” o personagem. Tanto que a Nicole Kidman, após a cena do “estupro”, ficou mal mesmo, a ponto de ter uma crise de choro intensa. Construiram uma espécie de “sala de confissão” no set, algo parecido com aquela, já conhecida dos brasileiros, que existe nos reality shows como o Big Brother por exemplo. Nessa sala de “confissões”, existe um registro do depoimento da Nicole Kidman dizendo que ficou mal, que passou a nutrir sentimentos muito negativos frente ao diretor, que nunca mais trabalharia com ele.

Muito interessantes as soluções técnicas cinematográficas conseguidas, os movimentos de câmera estranhos, o cenário absolutamente clean, ou ainda melhor dizendo, ausência de cenários, as inúmeras citações visuais e sonoras, a genialidade de fazer uma espécie de teatro filmado, com um clima conceitual, Brechtiano.

Finalmente, o conteúdo propriamente dito. Qual seu tema? Sobre o que é o filme?

Deixando de lado as interpretações sociológicas, eu diria que o filme é uma metáfora sobre o surgimento e desenvolvimento de todos os conteúdos emocionais e intelectuais desde o seu começo até sua degradação, nas pessoas que, fazem parte daquele lugarejo, situado nas Montanhas Rochosas dos EUA mas que poderia estar posicionado em qualquer lugar do mundo, em função de mudanças na forma dos seus relacionamentos. O filme versa sobre quais são esses sentimentos e idéias, tenta explicar sua origem e mostra seu desenvolvimento.

Freqüentam aquele esboço social, aquela alegoria sobre a sociedade em geral, um grupo de 15 pessoas que, de repente em suas vidas, veêm-se na contingência de acolher alguém estranho, uma mulher lindíssima, que chegou ao lugar fugindo de algo desconhecido e atemorizante para eles. Acabam aceitando conviver com ela por duas semanas, em uma votação difícil porém unânime. A partir daí, todos os valores e comportamentos de adaptação da comunidade são colocados em cheque.

A situação lembrou-me muito, em várias ocasiões, os textos de um grande psicanalista inglês, um dos maiores pensadores da psicanálise, Bion, que procedeu a detalhadas análises exatamente sobre isso: grupos. As motivações individuais, diga-se, a somatória pulsional individual que se estrutura no convívio entre pessoas, a resultante final dessa somatória e o tipo de clima que vai se estabelecendo com o progresso desse convívio e com o entrelaçamento das resultantes pulsionais dos diversos membros do grupo. Os diferente papéis que as pessoas acabam representando, as angústias, os desejos, os medos, a agressividade, complementares às vezes, a formação de “panelas” (times), a cumplicidade, o comprometimento e às vezes a falência total do comportamento ético.

No filme, como freqüentemente nos grupos humanos, existe até uma inversão total de valores, a catarse do final onde a “justiça”, a filosofia ideológica enfim, o pragmatismo justiceiro, é praticado exatamente pelos gangsteres e não pelos responsáveis pela aplicação da justiça.

As propostas ideológico-filosóficas “teóricas”, feitas sobre as desejáveis metas da comunidade, por um dos personagens principais, uma espécie de líder, meio que incomodava aquele pessoal. É ele que introduz a estrangeira em Dogville. Costumava fazer reuniões tentando convencer as pessoas de assuntos que considerava importantes, em função de sua ideologia filosófico-existencial.

Com a entrada em cena da estranha, passou a funcionar como uma espécie de observador do grupo. Ficou totalmente passivo, aceitando o desenrolar dos acontecimentos, não assumindo nada, nem seu amor pela estranha por causa de seu desejo meio vago, de encontrar seu tema para se tornar, enfim, escritor. A falta de saber como manejar a agressividade crescente dos outros, também como na vida, freqüentemente, deixa claro essa falta de “liderança pragmática” se é que podemos chamá-la assim, o oposto do que acontece com um líder pragmático com um objetivo, Moisés por exemplo, que sabe exatamente como e para onde conduzir seu povo.

Aliás, interessante como outra metáfora, que o cachorro do filme (dog of the ville ou o vilarejo do cachorro), se chama exatamente Moisés. Observe-se que ele é simbolizado apenas, não tem existência concreta. O lugar em que deveria estar é riscado no chão, como naqueles filmes policiais cujo risco no chão mostra onde se encontrava o cadáver. Quer dizer, a metáfora seria que o líder, no sentido da liderança pragmática praticada por Moisés, não existia na comunidade, pois o “lider” de Dogville, que por sinal nem foi eleito, é aceito, provisoriamente, muito menos pelas suas próprias qualidades que pelas necessidades dos “liderados”, exatamente como já constatara o grande Bion sobre os líderes emergentes nos grupos humanos.

As pessoas daquela comunidade, na verdade nem sentiam necessidade afetiva nem cognitiva nenhuma em um primeiro momento, muito menos viam vantagem em relacionamentos interpessoais, daí sua falta de motivação às reuniões. As pessoas demoram um pouco para estruturar seus desejos quando colocadas em um grupo, fenômeno muito bem observado e analisado pelo citado Bion.

O personagem que “organizava” as reuniões “democráticas”, era tão abúlico e sem pragmatismo que faz até com que se pense que poderia ser um representante da doença mental muitas vezes não constatada pela população, conhecida como esquizofrenia simples. Mesmo assim, exatamente como inúmeros mendigos da cidade grande, que se excluem do convívio social, que não tem proposta nenhuma para nada, muito menos propostas sociais, que não fazem absolutamente nada, têm apenas vagas idéias que nunca se concretizam, perturbava todo mundo com propostas pseudo-filosóficas que ninguém achava interessantes. E, no entanto, iam às reuniões. Todos precisamos de líderes, mesmo quando não queremos nada ou não temos objetivos. Parece se tratar de uma característica do ser humano.

Enfim, como toda grande obra de arte, repito, admite muitas formas de compreensão e interpretação. A maneira como a Nicole Kidman arrasta aquele peso acorrentado ao seu pescoço, sua “resignação” com os acontecimentos, faz lembrar também Cristo carregando sua cruz. Quer dizer, existe aí também outra espécie de citação, no caso, de um fato religioso, porém com desfecho totalmente diferente. Também, como no proporcionado pela Paixão de Cristo, humano, excessivamente humano.

A arte de criar filhos – Limites, é importante colocá-los?

A importância da colocação de limites na criação de filhos, quase sempre questionada pelos pais pela característica, me parece, de ser pouco intuitiva e mal compreendida, é, no entanto, constantemente lembrada pelos profissionais do meio psiquiátrico e psicológico, em artigos, livros e periódicos científicos que tratam de desenvolvimento psicossocial.

Quando me colocam perguntas sobre o tema, em palestras ou mesmo em consultas, constato que de um modo geral, as pessoas consideram a atitude paterna e materna de “colocar limites”, no mínimo muito chata. Questionam se não se trata de uma atitude ultrapassada, “fora de moda”. Muitos têm grande dificuldade de compreender sua importância no processo educacional. Colocar limites, impediria um desenvolvimento criativo, já chegaram a me dizer.

Como disse ali em cima, o que é intuitivo para alguns pais, é que a “liberdade” é essencial. Colocar limites é vivenciado como uma restrição à liberdade da criança. Nada mais equivocado. Deixar a criança fazer tudo o que quiser não é absolutamente contribuir para sua liberdade interior, conceito muito mais complexo.

Deve-se pensar na questão do limite a ser colocado às crianças e adolescentes, como se ele funcionasse como uma espécie de “foco”, um recorte da realidade que você apresenta inicialmente, para facilitar a compreensão e preparar o caminho para focos maiores ou diferentes.

Pensado dessa maneira, o limite deixa de ser uma coisa ruim. Ele apenas circunscreve, temporariamente, determinado aspecto da realidade, digamos, total. Com esse aspecto em evidência, os pais estarão fornecendo um ponto de partida, um referencial, um modelo, que será inclusive questionado quando a criança ou o adolescente compreendê-lo e manejá-lo bem. Será mais fácil, então, continuar a construção individual da própria realidade psicológica e social. Sem esse modelo inicial, tal construção se torna muito difícil, pelo gigantismo do empreendimento. Para se construir um prédio de 40 andares, tem-se antes que construir o alicerce, o primeiro andar, o segundo, etc. O construtor teve que se focar na conntrução de cada andar antes de passar para o próximo.

Ocorreram então, limitações focais temporárias que possibilitaram o resultado final.

Limite, no sentido em que a palavra é usada para falar sobre desenvolvimento psicológico, é isso: uma imposição provisória, que, mais que permitir o desenvolvimento, é condição necessária para que ele ocorra. Embora, claro, nem sempre suficiente.

Exemplificando: não é que todos nós tivemos que deixar de brincar para ir para a escola e isso foi uma restrição à liberdade, uma imposição castradora, uma agressão, uma perda, um atentado aos prazeres de nossa infância. É que aprender a ler, naquele momento da vida, foi um foco importante, um alicerce que possibilitou outros desenvolvimentos no futuro.

Da mesma forma, não é que impedir a criança, o jovem adolescente de fumar maconha seja uma atitude ruim, decorrente dos adultos serem todos ruins e invejosos e com velhas idéias, que não se lembram mais da sua juventude, como uma vez um jovem comentou em um momento de grande ódio frente às imposições “da sociedade comandada por adultos”. É que, além de ser péssimo para a saúde, se o jovem fumar maconha, se se focar em drogas, vai deixar de focar em outras coisas, importantíssimas para seu futuro.

Esse jeito de se compreender a questão dos limites, ajuda a compreender a sua importância e, talvez, possa fazer diminuir a implicância que muitos pais têm com a palavra e com a idéia de dizer “não” a seus filhos.

Quintino, o Fidalgo

Eram seis horas da manhã, em ponto, quando Quintino chorou pela primeira vez. Nasceu no Hospital do Servidor, sujo, sério, com olhos abertos e sobrancelhas imperceptíveis porém franzidas. Veio tão sério e crítico que a enfermeira resmungou um ríspido Credo!, justificado logo em seguida por um sonoro Não tenho culpa alguma de você ter nascido no corredor.

Recém saído das mamas da mãe, uma portuguesa falastrona e acolhedora, Quintino desbravou os quartos, a cozinha, a avó e o quintal de sua casa de tijolos. Ficava na Penha, bem perto de uma dessas pequenas igrejinhas de bairro, na mesma rua onde empinou várias e coloridas pipas, a Rua da Avenida. Já havia conhecido dois amores quando se perguntou como uma rua poderia ser avenida, e se debruçou sobre enormes maços de papel, empilhados desordenadamente, Arrume tudo até às 15h00.

Era seu primeiro emprego, como auxiliar de escritório, e o havia conseguido por indicação de um primo seu, morador do Brás. Achou tudo uma injustiça, já que outros dois candidatos, com muito mais experiência do que ele, Mais louvor, disse mais tarde à mãe, deixaram de ser escolhidos. Não questionou, embora tenha hesitado um pouco ao ser comunicado pelo Brás, Quintino, meu querido, vamos trabalhar juntos.

Foi mais ou menos no segundo ou terceiro dia depois de ter conseguido o trabalho que sua mãe lhe disse, Você parece um desses fidalgos de que sua bisa me contava quando eu era moça, e sorria, opulenta. A avó concordava, experiente, Este, debruça os olhos onde os outros querem pôr a mão.

Não se sabe por qual motivo exatamente, mas apesar do título ou talvez por conta dele, Quintino insistia em se meter em brigas do bairro. Não tolerava humilhação em público, mal-trato de criança ou roubo de gol em futebol de rua. Das linhas com cerol, então, dizia, Tenho ofensa, não tenho ódio, é pior: tenho ofensa.

Foi subindo na vida. Chegou ao cargo de auxiliar administrativo de um escritório de advocacia, com curso de contabilidade terminado e o diploma pendurado na sala. É bem verdade que este já era o segundo escritório em que fora trabalhar, bem que demitiu-se do primeiro no instante seguinte à risada ostensiva do administrador, Larga de ser ridículo Quintino, como assim pendurar seu diploma na parede?

Ia todo dia à zona oeste, em seu fusca verde. Ano 1975, motor 1400 e à gasolina, detalhava quando lhe perguntavam, Dei-lhe o nome de Chão de Estrelas.

Chão, o apelido do fusca, ampliou os olhos e os calos de Quintino.

Guiava-o limpo e encerado, justificava o capacete que usava ao dirigir pela falta de segurança de carro antigo e embandeirava um adesivo colado no vidro traseiro, Não tenha inveja de mim, trabalhe. À noite, depois do trabalho, dava voltas tímidas por uma cidade imensa, cujos bairros, Vila Clementina! Vila Sônia! Pinheiros!, ligava aos pontos finais e iniciais de seus ônibus infantis.

Foi na sua segunda visita à Vila Madalena, em uma instransponível sexta-feira à noite, que aconteceu, a sério, pela primeira vez. Quatro rapazotes entrincheiravam duas mocinhas, miúdas, em frente a uma danceteria, e lhes desciam pontapés sem dó, Não vai me querer?, dava-lhe um pontapé, Vem dar mole e não vai querer?, tapa na cara. Quintino parou e gritou de dentro, Larga, safado! Pára, canalha!

Outros oito sujeitos saíram da danceteria, aos berros de Cadê aquelas biscates?, quando o Chão já estava estacionado, Quintino embrutecido com seus então dezoito punhos fechados, os olhos semi-cerrados e a ofensa no coração, Tenho ofensa, gritou, ainda de capacete.

O capacete que o salvou. Tinha a aparência de um tísico e como de capacete se assemelhasse a um pirulito, os doze rapazotes se sentiram ainda mais encorajados, por além de sua imensidão numérica. Foram dois minutos de severos pontapés, tapas, socos cuspes e garrafas. Trinta minutos depois, quando a polícia chegou e levou Quintino para um hospital, viu-se o Chão arrebentado, o pequeno vidro traseiro e o espelho esquerdo em pedaços, além de risquinhos minúsculos e laboriosos, Desses doem mais, eu sei, Chão.

As moças que salvou o acompanharam entre chorosas e agradecidas ao hospital. Uma delas se chamava Alaíde e morava na Penha a três quadras da sua casa.

Foi ela que, com Quintino em triste figura, dirigiu o Chão até a Penha e foi ela que pela primeira vez ouviu o consenso dos amigos e familiares, que acabaram por o considerar como um apaixonado sem objeto.

A verdade é que Quintino repetiu a história da Vila Madalena quase uma centena de vezes, das maneiras mais diversas possíveis.

Às vezes se insurgia contra o arrocho salarial, contra o governo ou a favor dele, ofendia o diretor da escola dos filhos, que suspendera uma classe inteira sem motivo, gritava a favor de um cinema engajado, contra a globalização, a favor de qualquer resolução da situação na Faixa de Gaza, entrava em uma contenda sobre jogo de bolinha de gude, e fazia piquete por um jornalismo mais sério e censura na televisão.

Invariavelmente as coisas esquentavam a tal ponto, que, em defesa da parte oprimida na discussão, partia para a ofensa, Ofensa, seu bastardo!, dizia.

Chão tinha uma oficina cativa, já andava pela oitava lataria, completa, do começo ao fim, e Quintino fazia questão de pedir, tão logo abrisse um dos dois olhos, Avisem a Alaíde.

Nos últimos tempos, aposentou-se como auxiliar de administrador de escritório. Todos os dias, de manhã, pára o Chão em frente ao boteco e se senta na cadeira branca de plástico e na mesa de bar de repetidos quatro pés. Dá conselhos e indicações desde que põe o capacete até o momento em que o retira, no bar, já na Rua da Consolação.

Dois copos de pinga e toca um piano imaginário. Todos os dias é Dois copos de pinga!, e bota a tocar seu piano imaginário.

Lembra que sempre quis alguém para sentar ao seu lado no Chão, em suas voltas por São Paulo, mas não encontrou.

Um apaixonado sem objeto, relembra. De fato, agora lhe parece fazer algum sentido. Não sabe porque bateu tanto porque apanhou tanto e, dando um tapa na testa, É certo, sem dúvida!, só pode ser coisa desse tempo doido, da minha gente amalucada que nessa diversidade de louco não consegue escolher nem qual pipa quer empinar, nem para qual lado quer ir.

E chamando o dono do bar,

Aleixo!,

Diga, Dom Quintino,

Fale para alguém mandar um recado para a Alaíde de que estou aqui.

(Artigo escrito por Pedro Campos. Outros artigos do mesmo autor poderão ser lidos em: http://www.literarodia.blogspot.com)

Recaídas

Dr. José Roberto

O tempo vai passando e de certa forma vou vendo coisas que preferia não ver, mas, se sou obrigado a ver queria eu poder compreendê-las.

Recentemente… por uso de substâncias…. ficaram abstinentes por mais de cinco anos.

Como pessoas esclarecidas, …. podem voltar a fazer algo (que eu e todos acreditavam ou esperavam) que não fariam?

Um tema atual porem pouco compreendido é “recaída”.

… após dez anos abstinente ele voltou a usar…
(não importa se foi sexo compulsivo, violência, nicotina ou heroína)

Por que um “ex”fumante volta a usar nicotina após um, dois ou cinco anos de abstinência?

Quais partes do cérebro estão envolvidas ou debilitadas?

As influências do meio ambiente, como contribuem?

 

(Questões de um leitor preocupado com recaídas nas drogas fato que está acometendo dois dos seus amigos)

Antes de analisar recaídas, prezado leitor, é necessário compreender a “caída” inicial.

Por que um indivíduo começa a usar drogas ou a jogar ou a ter qualquer comportamento de adição? Veja que não estou falando aqui de experimentação ocasional de uma droga qualquer, estou me referindo a uma outra fase que eventualmente se originou da experimentação, que é um comportamento de adição, ou do popularmente chamado vício. Então, refaço a pergunta: por que as pessoas se viciam?

A resposta genérica é simples: para combater conflitos internos que causam angústia.

A adição a drogas, ao sexo, aos jogos ou ao trabalho, aliviam essa angústia. Resolvem-na de alguma maneira.

O sujeito cai no vício, no hábito persistente de fazer algo, com os sentidos pejorativos todos que existem por trás dessa acepção da palavra, porque se sente melhor do sintoma ansiedade.

A realização de um vício, em um primeiro momento e imediatamente, acaba com o incômodo da angústia.

A embriaguez, em seu sentido próprio e em seu sentido figurado – exaltação causada por grande alegria ou admiração; enlevação, inebriamento, êxtase (Dicionário Houaiss) – decorrente de qualquer droga ou de qualquer paixão, muda imediatamente o foco desagradável em que a pessoa está fixada e que lhe está provocando sofrimento.

Conflitos internos nascem de interesses contraditórios dentro da pessoa: entre dois desejos diferentes, entre um desejo e a censura a ele, entre dois ideais, que se assemelham mas que são diferentes; outras vezes entre assuntos oriundos de diversos polos de interesse da pessoa. Muitos desses conflitos, por serem mais frequentes, já se encontram mapeados há bastante tempo. Um dos polos de determinado conflito psicológico pode se originar, por exemplo, do superego, instãncia psicológica postulada por Freud, conceito fundamental da teoria psicanalítica.

O superego cobra atitudes congruentes com nosso projeto de vida, atitudes que foram idealizadas e fixadas como boas. Se não estivermos cumprindo com esse plano geral de vida, que nem é totalmente consciente, sofreremos forte ansiedade que é, então, indicadora de conflito interno. Uma espécie de termômetro da “febre” emocional aqui chamada de “conflito interno”.

Diz-se, com grande propriedade, que o superego é solúvel em álcool, isto é, pode-se compreender, se quisermos aqui explicar o fenômeno também biologicamente e não apenas psicologicamente, que a substância etanol, sendo depressora do sistema nervoso central, exclui do funcionamento cerebral naquele momento, os neurônios associados com a censura interna, com o superego, com aquele nosso lado que compara o que estamos fazendo com o que desejávamos como projeto de vida. A embriaguez muda o comportamento da pessoa globalmente pelo fato de deprimir todos os neurônios mas o efeito que chama mais a atenção em um primeiro momento é a falta de crítica que induz no intoxicado.

O álcool dissolve o superego. Por um tempo.

Exatamente o que desejamos, às vezes ou quase sempre. Se conseguirmos desativar o guarda, anular a polícia que existe dentro da gente, poderemos fazer coisas proibidas porque prazerosas, com muita facilidade. É aqui que entra a adição a uma droga como o álcool.

Ainda estamos engatinhando no esclarecimento da intimidade biológica desses processos cerebrais relacionados com os componentes pulsionais.

Chegou-se, já há bastante tempo, ao circuito de recompensa cerebral que envolve neurônios cujos corpos celulares estão em núcleos ligados ao sistema límbico e que causam prazer imediato quando estimulados. Seu mapeamento científico detalhado continua apesar de muitas das vias pelas quais os impulsos nervosos chegam a tais neurônios já serem conhecidas, constando da realidade científica atual.

Pois bem, as drogas e as paixões estimulam de alguma maneira esse circuito de recompensa.

Como? Sabe-se só um pouco, ainda, sobre isso. Porém, o conhecimento atual já se mostra suficiente para fazer surgir no universo do tratamento biológico, na moderna psicofarmacologia, remédios bastante eficazes nesta primeira década do século XXI.

Também os tratamentos psicoterápicos evoluiram muito.

As pessoas tendem a ter maior facilidade para lidar com tratamentos que não incluam remédios. Tentem fazer esta pergunta, a conhecidos e parentes: o que você considera que é melhor para acalmar a angústia provocada por um conflito interno: um afago ou 3-hidroxi-4-pentano-qualquer-coisa na veia?

Quase todo mundo responde que o afago é melhor, não é?

Acontece que essa, talvez, não seja a resposta majoritária daqui a cem anos.

Tal dicussão, no entanto, é também complexa e demanda outro artigo. Voltando ao tema deste, o que é senso comum é que as pessoas vão atrás das sensações prazerosas. Também, por outro lado, fogem de situações potencialmente ou francamente desprazerosas. Ninguém quer pagar mico nenhum, nunca. Não apenas gente, seres humanos.Todos os animais.

Um rato com um eletrodo implantado em seu circuito de recompensa cerebral, não quer saber de mais nada a não ser de ficar indefinidamente apertando a alavanquinha que provoca o estímulo da área cerebral. Orgasmos. Não são o melhor da vida? Não é o que mais motiva as pessoas? O rato só para quando se esgota fisicamente de tanto orgasmo.

Sabendo dessas coisas, pode-se interagir com a pessoa que está apresentando o problema e até ajudar a resolvê-lo, com remédios e com outras abordagens.

É por isso que as psicoterapias, as religiões, as amizades, os conselhos, as repressões, funcionam. Em graus diferentes de efetividade, claro, mas que funcionam, funcionam.

Hoje em dia é apenas parcialmente conhecida a maneira como o impulso nervoso decorrente de um afago, de um cafuné, viaja na rede neuronal, quais suas conexões, em que lugares cerebrais age, quais mediadores químicos estão envolvidos, qual o mecanismo íntimo biológico que faz com que cause calma, por exemplo, num nenê que está num berreiro catastrófico total.

De qualquer modo, indiferente a esses detalhes, a maioria das pessoas se contenta em saber que o que acalma o nenê estressado é o afago.

E como seria o afago dirigido a um drogado? Quem deveria fazê-lo?

Existem muitas formas de ser feliz. Algumas felicidades são mais simples, outras mais complexas. O nível de intensidade delas também é variável.

Observar um pôr-do-sol, uma paisagem deslumbrante, um bicho e seu estranho comportamento, é muito prazeroso para muita gente. E imediato.

Sentir um gosto agradável, ouvir uma música, deliciar-se com ela. Imediato.

Fazer essa música que deliciou alguém, também é prazeroso. Um prazer maior porque se sustenta em outros prazeres pequenos, remete a outros momentos, tem a característica de se repetir em outras conjunturas, compete, celebra, rearranja as iniciais.

Fazer uma música é muito mais complexo que ouvir uma música. Deve ser e é, portanto, um prazer maior. Quem já fez uma música sabe disso.

Temos, então, uma escala de prazeres dentro da gente.

Prazeres menores, afagos, que, gradativamente, vão se somando, se articulando, se complicando e vão construindo outros prazeres maiores.

É necessário firmeza de intenção, insistência, um certo insistir, uma capacidade de resistir a frustrações iniciais, que não são todos os seres humanos que o conseguem, para executar tal tarefa de obtenção de prazeres complexos.

Às vezes nem é necessário o resultado final. O próprio ato de conseguir construir esse percurso, de tê-lo planejado, com o tempo e com a percepção de que o resultado imaginado foi possível e foi muito bom, já se torna prazeroso, para alguns.

Penso nesse personagem que está em evidência outra vez na atualidade, com dois filmes que pretendem biografá-lo parcialmente e que já esteve antes no imaginário popular, por ser figura emblemática de revolucionário: Ernesto Che Guevara. Com a vitória que obtiveram ele e seus companheiros, poderia ter entrado em outra dimensão de sua existência, ajudar a reconstruir sua pátria da maneira como sempre sonhara. Não quis, no entanto, usufruir desse novo prazer, ao contrário de Fidel Castro. No momento subsequente à vitória da revolução cubana, existia ali a necessidade de reconstrução do país que, em última instância, era o fim que Fidel ansiava. O meio para conseguir esse fim, foi a revolução.

Ernesto Che Guevara, no entanto, preferiu continuar revolucionando outros lugares, outros países, derrubando estruturas sociais que julgava insuficientes. Fixou-se no ato de fazer revoluções. Mirava-se em Bolivar, não em Fidel Castro. O meio (revolução armada) para atingir um fim (reconstruir o país não mais com as regras do capitalismo) passou a ser um fim em si mesmo, o objetivo de sua existência.

Ser revolucionário é algo absolutamente complexo. Muito mais “evoluído”, no sentido de complexidade, que o ouvir uma canção. Ou que fazê-la.

São, portanto, coisas diferentes, que levam a intensidades de felicidade diferentes. Para se conseguir a felicidade associada com a realização de um sonho, é necessário, entre outras coisas, uma tolerância e uma resistência a frustrações muito grandes, que drogados de uma forma geral não têm dentro de si. Preferem os prazeres mais imediatos apesar de menos duradouros e menos intensos.

De outro lado, evolução não significa, por si só, o abandono definitivo de soluções parciais conseguidas anteriormente.

O autor de músicas nunca deixa de curtir outras músicas, nunca deixa de gostar de ouvi-las. Apenas as ouve de outro modo. Ouve-as com ouvidos de compositor. Não mais de simples admirador.

É por isso que recaídas na droga não devem ser consideradas o fim do mundo.

Representam apenas uma volta ao primitivo modo de ser. Ou, pelo menos, uma tentativa de voltar ao que já passou, ao que já viveu anteriormente. Um saudosismo. Por isso mesmo faz parte do processo de abandono de determinada fixação.

Fuga para as drogas. Recaídas nada mais são do que retornos a momentos onde resolveu “bem” alguma situação conflitante que lhe causava forte incremento na angústia normal até então administrável.

Independentemente do enredo social a que está submetido, do maior ou do menor interesse que o romance pessoal adquira para este ou aquele público, de maior ou de menor complexidade, contado desta ou daquela maneira, o sujeito recai quando não consegue mais administrar, com o aparelho psicológico que possui, naquele momento, a ansiedade resultante de reagudização de seus conflitos internos. Ou de novos conflitos também insolúveis naquele momento.

Isso é verdadeiro e acontece com frequência.

Existem outras possibilidades, menos freqüentes.

O viciado pode, também, numa atitude magnânima consigo, achar que já se livrou do passado e experimentar a maneira que utilizava anteriormente, que hoje sabe que é pobre, para constatar vitoriosamente, verdadeiramente, que mudou ou que já não depende mais daquilo, da droga de abuso.

Esse coitado, por pura ignorância, talvez, ainda não sabe que resolveu cutucar a onça com vara curta.

Acontece que a força biológica é enorme. A onça o engole de novo. Os receptores cerebrais anteriormente sensibilizados para a droga, que estavam desativados, assim como velho caminho, o percurso do estímulo neuronal, são imediatamente reavivados. E o prazer reaparece como uma velha fantasia utilizada em outros carnavais, com todo seu esplendor.

Realmente não se deve cutucar a onça com vara curta. A onça, a bem da sanidade geral, deve ser esquecida.

Mas isso é mais um aprendizado que se tem que fazer.

O adito deve, sim, ser alertado para o fato.

Mas, quando acontece, tal aprendizado tem que ser realizado pelo próprio sujeito, no modo de vida da atualidade em que está sofrendo com o problema. Não pode ser imposto e nem é possível aprendê-lo e apreendê-lo apenas teoricamente. Isso significa que não é desejável que seja tirado de sua cidade, de sua família, de seu trabalho, para se tratar numa clínica no campo, até se desintoxicar e “mudar seu modo de ver a vida”.

Assim não mudará nunca. Não vai repensar seus problemas nem se repensar num contexto de cidade grande, convivendo com pessoas na roça, por exemplo. Por mais preparadas que sejam. Quando voltar, os problemas que o fizeram recair continuarão no mesmo lugar.

Para que resolva esses problemas ele precisa continuar convivendo com a gente de seu meio, com seu trabalho, com seus vizinhos, com seus colegas. Dentro do seu contexto de vida. Tem que se tratar na cidade onde se encontra, resolver seus problemas dentro dela.

Terá que procurar ajuda concreta, especializada, terá que começar psicoterapia e tratamento com psiquiatra. Terá, talvez, que conviver com uma equipe multiprofissional por um tempo. Infelizmente não vai sair do buraco em que se meteu novamente se não fizer nada e se sua família for ignorante ou até mesmo cúmplice nesse seu modo de agir.